Por Folha de São Paulo/Jornal Clarin Brasil 20/11/2019 às 9h45min
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Quando morava em São Paulo, ainda menino, Milton Gonçalves diz ter sido impedido por um segurança de assistir a um filme no cinema. O motivo? Sua cor. Hoje, aos 85 anos e com a carreira consolidada no teatro e nas telas que um dia lhe foram negadas, ele afirma que percorreu um caminho longo e difícil para galgar o prestígio profissional.
Semanas antes do Dia da Consciência Negra, comemorado nesta quarta-feira (20), o ator conversou com a reportagem sobre igualdade racial. “Meu país é o Brasil, e os brasileiros são todos: brancos, negros, amarelos, azuis.”
Data atribuída à morte de Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial e símbolo de resistência contra a escravidão, o feriado do Dia Consciência Negra, instituído pela lei 10639/03, entrou para o calendário em 2011. A norma, ainda, determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira nas escolas, com o objetivo de resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil.
O ator relembrou episódios de preconceito que viveu ou testemunhou ao longo da vida e diz que um presidente negro no Brasil o faria se sentir mais representado na sociedade. Ele afirma que faltam representantes negros, índios e orientais na política nacional.
“Às vezes as pessoas falam que sou racista, mas sou um ser humano, e nós negros somos metade da população desse país e nunca tivemos um presidente negro. Tivemos três governadores negros no país e mais nada. Nos EUA teve um presidente negro, com a família negra o acompanhando. Não termos a mesma coisa me incomoda”, diz Gonçalves.
Ele também externa sua insatisfação quanto ao vocabulário muitas vezes utilizado na aferição a negros no Brasil. “Quero que não tenhamos mais essa coisa de chamar o outro de ‘crioulo’. Crioulo é cavalo nacional. Eu sou negro. Temos que respeitar as negras. Não é ‘crioulinha’. É uma jovem negra. Temos que batalhar. O dia em que tivermos um presidente negro vou dizer: puxa, nós todos batalhamos bastante (…) Nós, negros, somos cidadãos, mas infelizmente ainda não somos respeitados como tais.”
O veterano fala ainda sobre as dificuldades que teve no relacionamento com Oda Gonçalves, mãe de seus três filhos, com quem foi casado de 1966 a 2013, ano em que ela morreu. Oda era branca. “Nós nos amávamos. A família dela foi contra e fez de tudo para nos afastar. A minha também. Mas eu gostava dela e pronto. De vez em quando, ela era desrespeitada quando dizia que seu marido era eu. Achavam que tinham o direito de ficar sacaneando ela. O couro comia.”
Sem lembrar a data exata do ocorrido, Gonçalves também relembra um episódio de racismo que aconteceu no Clube de Regatas Tietê, em São Paulo, durante um baile de Carnaval. “Quando era menino, ia lá para a frente do clube com meus amigos para vermos as fantasias das pessoas. Um casal fantasiado de árvore chegou ao baile e estávamos todos na calçada olhando, pois não podíamos chegar muito perto. Dentro do clube, eles tiraram uma parte da fantasia. [Os seguranças] viram que o homem era negro e colocaram o casal para fora.”
O ator segue com o relato dizendo que o referido casal tinha um filho negro e um branco, que estudavam em colégios diferentes por causa da cor. “O filho mais claro deles estudava em uma escola de brancos. O negro não podia (…) Até hoje em certos lugares ainda temos preconceito racial.” E finaliza: “Desde o dia, há muitos e muitos anos, que não pude entrar no cinema porque era negro, vi que tinha que mudar as coisas.