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A estranha modernidade brasileira – Por Luca Creido

Fiquei perplexo com o caso. Violência contra a mulher é comum no meu ambiente de trabalho (infelizmente, vestígios do nosso país medieval), mas, com tamanha complexidade, é rara. Instalar um cavalo de troia não é para qualquer um.”

Por: Luca Creido – Academia Mineira de Belas Artes A.M.B.A – 09/02/2020 às 00h02min

A modernidade chegou no Brasil de forma muito estranha, até para padrões de um país no qual Bolsonaro é levado a sério, Felipe Neto escreve livros e Luan Santana é eleito o cantor do ano. O problema da nossa modernidade é que ela não chegou por inteiro. Veio parcelada. E ainda faltam muitas parcelas.

Afinal de contas, em que país, fora o nosso, I´phone convive com falta de saneamento? A Internet é 4G, mas funciona igual internet discada?  Tem projetores de slides nas aulas, mas os alunos dormem assim que apaga a luz? A TV é Digital, mas o programa é da Sônia Abrão? O século XXI brasileiro tem resquícios do século XIII.

No direito também temos isso: leis moderníssimas, mas de difícil aplicação e compreensão. Um erro! Quando mais claro, mais acessível o Ordenamento Jurídico ficará. Crimes como o de corrupção passiva são simplesmente indecifráveis:

“Corrupção passiva- Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.”

Quase ninguém da população consegue entender algo assim. Aliás, duvido que os próprios congressistas entendam! Isso, inclusive, explicaria, um pouco, suas reincidências criminosas. Aposto que se você explicasse este artigo a eles, a maioria responderia:

_ Isso é corrupção?

_ Sim, senhor.

_ Carai… Ainda bem que quem recebeu foi um amigo meu.

Para mim, esse mesmo artigo poderia ter sido feito de forma mais simples:

“Corrupção passiva- Art. 317 – Comete corrupção passiva quem o Moro acha que esteja praticando, desde que não seja do PSDB. Se tiver foro por prerrogativa no STF, pratica aquele que o Gilmar Mendes não conseguir soltar: Pena – pena da sociedade.”

Se todo Código Penal fosse reescrito, pelo menos aproximaríamos nossas leis da falta de modernidade de nossa sociedade.

E não ache que estou exagerando. Infelizmente, ainda não estamos preparados nem para o séculos das luzes, imagine para o nosso! Até hoje, se vemos uma luz, tentamos apagá-la (provavelmente por causa do medo da tarifa vermelha, vigentes desde as eleições de 2014).

Por exemplo, há alguns anos me defrontei com esses belos momentos em que a sociedade encontra-se, ao mesmo tempo, nas trevas e nas luzes.

Uma senhora veio conversar comigo enquanto eu ainda fazia estágio na Defensoria Pública. Mas não estava sozinha. No meio de uma tarde de quinta feira, mais de 30 graus, ela havia descido o aglomerado que mora levando seu computador com seu filho de nove anos. Eles estavam empapados. Ela tinha carregado o monitor, o teclado e um mouse, enquanto o garoto carregou o CPU, por cerca de 20 minutos de caminhada.

De acordo com seu relato, ela se separou de seu marido, um gesseiro de 40 e poucos anos, três meses antes, mas ele não aceitou o fim do relacionamento. Após várias brigas e desentendimentos, o esposo saiu de casa, deixando todos os pertences. Inclusive o computador, que ela passou a usar. E foi aí que percebeu que seu ex instalara um vírus, para monitorá-la. Desde que ela tinha visto isso, cobriu o CPU com uma tolha e deixou o monitor virado para a parede.

Fiquei perplexo com o caso. Violência contra a mulher é comum no meu ambiente de trabalho (infelizmente, vestígios do nosso país medieval), mas, com tamanha complexidade, é rara. Instalar um cavalo de troia não é para qualquer um.

Montamos, então, o CPU dela, para que me mostrasse como descobriu a atuação do ex. Ligamos o aparelho e ela me disse:

_ Olha aqui, vai aparecer aqui.

Aproximei da tela, com minha câmera, pois estava gravando. Foi ai que subiu um quadrado à direita, dizendo:

“INFORMAÇÃO DO AVAST!

As suas definições de vírus foram atualizadas automaticamente.”

E ela gritou:

_ Viu?!?!

Olhei para ela perplexo.

Depois de muita explicação, sobre qual seria a função AVAST, sem que ela acreditasse muito no que eu estava falando, disse que poderia mandar o aparelho dela para a perícia, se ela quisesse, para rastrear possíveis vírus. Entretanto, só com essa tela, seria improvável afirmar que o ex teria colocado algo para prejudicá-la.

_ Você tem certeza? – eu fiz que sim com a cabeça – Mas prefiro que você mande mesmo assim pra perícia. Não sei o que meu ex pode estar planejando. Ele é pentecostal.

Eis nosso país! O Brasil é um lugar que a modernidade não veio por completo. Ao mesmo tempo em que a pessoa tem um computador com AVAST, acredita que ele é insuficiente diante dos poderes ocultos da fé.

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Luca Creido (ou Jucicriedo)
nasceu em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Formou-se em direito e em letras, ambos pela UFMG. Advogou por um
curto período e, atualmente, é Delegado de Polícia Civil, professor universitário e escritor, tendo publicado, dentro outros, o livro “Pucadiquê? Coisas que eu não queria esquecer…” Regularmente, publica
crônicas no seu site http://lucacreido.com.br/.
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