Cultura/Lazer

NÃO TINHA FOME, TINHA MANGA

Por Paulo Siuves – Academia Mineira de Belas Artes/ Jornal Clarín Brasil – 16/02/2020 às 09h01min

“Como as coisas acontecem na vida, tudo vira história, e a mangueira não existe mais, existem as histórias dos quatro irmãos, as lembranças da juventude que chegou e desabrochou à sombra da mangueira!”

NÃO TINHA FOME, TINHA MANGA

Por Paulo Siuves

Infância boa é a que tem história pra contar, que se pode contar, e eu tive uma infância muito boa. Corri na rua atrás de papagaios e pra subir na traseira de ônibus; subi em árvore, passei perrengue pra descer; chutei bola e arrebentei o dedão porque tinha pedra dentro… Fiz um pouco de cada coisa que vale a pena olhar para trás e relembrar com sorriso besta no rosto. Comida era coisa à parte. Minha mãe ficou sozinha para alimentar as crias – dois casais de filhos – e nunca deixou faltar comida no prato. Claro que ela chorava de fome para nos ver comer, mas isso é história para outro momento. Hoje em dia eu olho para aqueles tempos do passado e vejo o quão pobre fôramos, éramos realmente pobres de dinheiro, não de alegria e liberdade, mas de dinheiro? Faltava tudo.

Havia um pé de manga que era a nossa alegria. Minha irmã mais velha o plantou quando ela tinha oito anos. Essa mangueira era nossa fonte de inspiração, fizemos um balanço, chamávamos o balanço de “*gongorra”, e esse balanço ia muito alto, brincávamos sem noção de tempo. Horas? Criança daquela época não sabia que isso existia. Tinha hora de comer que era quando a barriga reclamava, hora de tomar banho, que era quando se podiam ouvir os nomes sendo gritados pelas mães, hora de dormir, que era quando a escuridão tomava conta do bairro, pois não havia luz elétrica com fartura como hoje em dia. Tinha um poste a cada trezentos ou quatrocentos metros de distância com uma lâmpada amarela bem fraquinha… Tinha a hora de ouvir histórias, isso era quando a fome não deixava a gente dormir e mamãe nos ludibriava contando histórias de terror. O sono vencia a fome e acabávamos dormindo. Se bem que ouvíamos histórias em momentos diferentes desse triste momento da fome, minha mãe comprava discos de vinil com os cantores que ela gostava e com histórias infantis que nos deixavam apaixonados; Branca de Neve, Pinóquio, Chapeuzinho vermelho, etc. Mas, a história no vinil que mais marcou de verdade, sem medo de errar, foi o “long play” dos Saltimbancos. Os Saltimbancos é uma peça de teatral infantil, inspirada no conto “Os Músicos de Bremen”, dos irmãos Grimm, que foi adaptada pelo brilhantismo de Chico Buarque, nós interpretávamos a cantoria dos bichos sem errar uma fala, e ouvíamos o disco à exaustão (dos adultos, claro). Cada fala era encenada como se fossemos artistas do teatro diante da ribalta.

Os bichos saltimbancos protegeram o direito de ter uma casa, um lugar onde formaram uma família, com casa, quintal, responsabilidades, medos e incertezas. A nossa casa era nosso lugar seguro, O nosso quintal era aberto, sem muros, uma cerca muito mal formada separava as plantas de casa das plantas da rua. E tinha era planta no quintal! Já contei em outra crônica como parecia que aqueles trezentos e sessenta metros eram grandes, o quintal da casa parecia mais um pomar, porque não era só o pé de manga que mencionei, tinha muita fruta e até alguma fartura. A mangueira era especial porque ficava bem na frente da casa e era muito alta, era o lugar das brincadeiras e do eventual descanso, das aventuras quando não tinha ninguém pra brincar junto, das armadilhas para pegar passarinho (que nunca davam certo), era fonte de alimento na época de mangas, era a nossa mangueira. Como as coisas acontecem na vida, tudo vira história, e a mangueira não existe mais, existem as histórias dos quatro irmãos, as lembranças da juventude que chegou e desabrochou à sombra da mangueira! No sopé daquela árvore não tinha fome, tinha manga.

*P.S. – A palavra certa é gangorra. Gangorra é outro brinquedo infantil. Para nós da periferia afastada, no final dos anos 70 e início de 80, era “gongorra” mesmo.

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Paulo Siuves é escritor, Formando da Universidade Federal de Minas Gerais, Presidente da Academia Mineira de Belas Artes, Embaixador Cultural da Academia de Letras do Brasil, Músico e Agente de Segurança Pública em Belo Horizonte, e escreve semanalmente para o Jornal Clarín Brasi
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