Por Eluciana Iris – Academia Mineira de Belas Artes – 08/03/2020 às 01h04min
JOÃO, MARIA, E A BRUXA, PUNIR OU PERDOAR?
Quem se lembra da clássica história de Contos de Fadas, João e Maria?
Muitos de nós acredito.
Os autores nasceram na Alemanha, na Idade Média, século XIX e deixaram esse conto que foi passado de geração em geração. A história perdura até os dias de hoje contada em várias versões, seja em livros ou em grande produção de cinema, como o filme: João e Maria, Caçadores de Bruxas, 2013. Recentemente estreou outra versão Maria e João: O Conto das Bruxas. Imaginem que tem até a versão brasileira.
Importante ressaltar que, na época em que viveram os escritores, a fome alastrou-se pela Europa, causando milhões de mortes, período este marcante por homicídios, altos índices de crimes, doenças em larga escala, infanticídios. Presença marcante de desnutrição severa, epidemias alarmantes e altíssima taxa de mortalidade, assolando a população em geral, principalmente crianças e idosos. Comida era artigo de luxo, ter um grão de milho em casa, era o mesmo que ver um oásis no deserto. Essa triste época deu aos escritores muitos elementos para voar alto na imaginação.
O clássico nos conta que, João e Maria, dois irmãos ainda crianças, são abandonados pelo pai em uma floresta densa, sombria, de árvores altas e sem nenhuma trilha conhecida pelos pequenos. O pai era lenhador, a mãe das crianças havia morrido e o pai casou-se novamente. A madrasta arquitetou um plano de matar seus filhos, e pediu para que ele abandonasse os dois a própria sorte na floresta, cheia de animais e outros perigos. O pai motivado pelo amor e fidelidade a esposa, acatou e executou o plano. Observa-se que a família estava em situação de pobreza, havia pouca comida em casa, desta forma as crianças eram dois pesos, e o plano perfeito para livrar de duas bocas, era abandoná-los na floresta, assim não conseguiriam achar o caminho de volta, seriam devoradas pelos animais sedentos de fome, e o casal sobreviveria à escassez. Não é narrada explicitamente esta parte de abandonar por causa da fome, mas parece uma conclusão quase óbvia.
Podemos dimensionar o medo de ficar perdido? Quem já teve a infelicidade de se perder em uma floresta, sabe a dimensão do desespero e falta de noção por onde caminhar, qual rumo escolher para sair daquela enrascada e perigo. Não esqueço quando um amigo adulto ficou perdido por mais de uma semana na serra do Espinhaço no Espírito Santo, era uma agonia ficar sem notícias, a família desesperada, fazia dó. Pensávamos que havia morrido, na época havia chuva e muito frio. E ele lá sozinho ao meio de rochas, encostas íngremes, árvores e animais.
Imaginemos duas crianças que nunca saíram sozinhas, qual o grau de desespero e medo de ambos?
A inocência dos pequenos era tamanha, que João jogava migalhas de pão no caminho percorrido, na esperança de achar o caminho volta para casa, mal sabia ele que os passarinhos com fome comeriam tudo. Mesmo se os passarinhos não tivessem com fome naquela hora, comeriam do mesmo jeito. Pássaros podem comer mais de 500 insetos por dia. O que eram aquelas poucas migalhas?
A noite chegou e tomaram consciência que estavam perdidos e sozinhos.
Eis que, na mesma floresta, vivia uma mulher solitária, sem convívio com parentes, amigos ou outros camponeses. Era velha, feia e estranha, de comportamento duvidoso, talvez sofresse de uma doença mental e gostasse de causar sofrimentos a quem conhecesse, ou mesmo por gosto diabólico puro. Os irmãos procurando ajuda, encontraram uma casa bonita, cheias de doces, comida farta, fácil de pegar, um paraíso, bem diferente da realidade de sua casa. Seus olhos brilharam, não pediram licença e entraram na casa sem mesmo conhecer quem morava ali, pouco importava naquele momento, a fome era grande demais e a tentação alucinante, comeram sem parar.
A dona da casa de repente apareceu, como num passe de mágica, deu medo nas crianças, mas sua voz era simpática, embora a aparência física causasse arrepios. Ela sempre bondosa, oferecia mais e mais comida. O tempo foi passando e aquela inocência dos irmãos foi se perdendo junto com as ofertas, engoliram a inocência. A bruxa fez de Maria a escrava da casa, desde que chegaram e João só comia. Passaram a ver naquela senhora, uma ameaça as suas vidas. Ela não era só uma velhinha feia, tinha intenções maldosas e perversas. Eles descobriram suas reais intenções, era uma bruxa, ela nada menos nada mais queria comê-los e os engordavam para ficarem mais saborosos.
Diante do perigo, os irmãos planejaram fugir, porém não bastava somente fugir, tinha que ter a parte da vingança. Afinal, a bruxa tinha intenção de fazer deles seu jantar. Isso não poderia passar em branco. A bruxa realmente tinha o plano de matá-los, era uma tentativa futura, mas os irmãos foram antecipados, executaram o plano de vingança em parceria, mataram a velha bruxa queimada viva dentro do forno de assar biscoitos. Olho por olho, dente por dente. Depois de matá-la, pegaram todos seus bens valiosos, dinheiro, ouro, joias e saíram correndo da casa de doces e guloseimas, na busca do caminho de volta para casa.
Passaram por perrengues na floresta, até encontrarem o caminho certo. Avistaram sua casinha e lá estava o pai, que ao reencontrar os filhos demonstrou arrependimento do que tinha feito. Os filhos perdoaram o pai por tê-los abandonado na floresta. Os irmãos contaram o acontecido com a bruxa, mostraram a seu pai os bens valiosos que conseguiram, e assim viveram e usufruíram do dinheiro da bruxa, fome ali não teve mais. A madrasta e a bruxa morreram, feijão no fogo. Seguiram a vida.
O tempo passou e fica a lição do enredo, que a fome, o desespero, falta de perspectiva de dias melhores, podem fazer que o ser humano sai do estado de inocência, pureza, para situações inimagináveis de dor, de atos para sobrevivência reprováveis, sem ética e moral. Assim outras histórias de justiça são relembradas em vários momentos da existência da humanidade. Vejamos antes de Cristo e depois de Cristo.
As mortes que ocorreram no “conto de fadas, faz lembrar da época do Código de Hamurabi, Lei de Talião, “Olho por olho, dente por dente”. Hamurabi nasceu supostamente por volta de 1810 a.C. e morreu em 1750 a.C. Em uma das leis, número 21, fica claro o matar alguém.
21 – Se alguém arrombar uma casa, ele deverá ser condenado à morte na frente do local do arrombamento e ser enterrado.
Hoje no Código Penal Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
É certo que, João e Maria entraram na casa e comeram sem permissão, parece que a bruxa seguiu o Código de Hamurabi, alterou o Código em parte, não enterrou sua presa gordinha e saborosa. E sim planejou matar e comer. Por outro lado, as crianças, os irmãos, foram “juízes”; julgaram o crime não cometido, a bruxa tinha intenção de matá-los, mas não consumou sua intenção, mas eles não perdoaram, decidiram que a sentença era a pena de morte, parecida da época média, aplicaram uma pena dolorosa, um suplício, golpearam a cabeça da velhinha e a jogaram dentro do forno de assar biscoitos ainda viva.
Nas palavras de Foucault “Que é um suplício? Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia Jaucourt]; e acrescentava: é um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade. O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei. Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de sofrimentos:.., da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em “mil mortes” e obtendo, antes de cessar a existência, the most exquisite agonies. O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas.”
Para Beccaria (1764) autor do livro das Penas e Delito, é elucidado: “Da pena de morte: Esta pena não é baseada em direito algum, é, apenas, uma guerra considerada necessária contra um cidadão da sociedade; fora isto, ela nunca pôs fim ao cometimento de delitos. Este castigo tem menos efeito do que uma pena de longa duração; uma pena perpétua pode afastar o crime de qualquer cidadão. O que a pena de morte proporciona é um arrependimento fácil de última hora, a perpetuidade da pena daria uma comparação dos males praticados. Para finalizar, é dito que nenhum homem tem direito legítimo sobre a vida de outro.”
Estamos no século XXI, onde noticiários diários, mancham de sangue as linhas e entrelinhas do mundo real. Deparamos com crimes bárbaros, dos mais diversos, o ser humano tem um poder criativo, para inovar a maldade e crueldade em assassinatos, vinganças, justiças feita com as próprias mãos, superam os mais fascinantes escritores de filmes de terror, suspense e ficção. No mundo virtual muitas das vezes há “juízes” sentados no sofá de casa, ou na cadeira do escritório, julgam, proferem sentenças, sem provas ou conhecimento da causa, por vezes basta o telefone sem fio, sendo suficiente para bater o martelo: CULPADO ECONDENADO.
Diante dos crimes cometidos no “conto de fadas”, PUNIR OU PERDOAR?
O ditado é certo, “o pau que dá em Chico, dá em Francisco”.
Eluciana Iris Almeida Cardoso é natural de Campo Belo-MG, Brasil. Reside em Belo Horizonte, é escritora, poeta, nutricionista, professora, palestrante, bacharel em direito. Membro da Academia Luminiscence Francesa e do Núcleo de Letras Y Artes de Buenos Aires. É Vice Presidente da Academia Mineira de Belas Artes e escreve semanalmente para o Jornal Clarín Brasil