Cabral descobriu o Brasil? (I)
Por Angeli Rose
O incontornável é definido como o que nos chama e convoca a refletir sobre sua “presença”. Mas também pode ser o inexpugnável; inalienável; interminável; enfim, gradações e aspectos semânticos que podem ser assumidos pelo termo, dependendo do contexto.
A pandemia atual do COVID-19 é o tema do qual não podemos fugir (ainda que alguns digam de modo interessado que desliguemos a TV), ao contrário, exige que o encaremos dentro de nossas casas como fantasmas que querem entrar sem serem convidados, a não ser por descuido, contradição, ou medos: da solidão, da falta, da intimidade e da morte. Definir os contornos de um fantasma é missão quase impossível, assim como no momento esse vírus a nós parece ser.
Encarar a face de um fantasma também pode ser algo assustador, porque a sua natureza parece indefinível, inexata e indefinida. Digo “parece” em razão do processo de conscientização de nossas contradições, que levam tempo, até permitir identificar alguns fantasmas, dar nome a eles e por fim expurgá-los, incorporando-os a nosso pensamento crítico, até elaborá-los em nossas obras.
“Você tem fome de quê?”
Questão posta pela canção dos Titãs, grupo de rock brasileiro, que na sintaxe aproxima-se de: Você tem medo de quê? E dependendo da sua fome esta segunda pergunta pode e muito ser irmã da anterior, ao menos no campo simbólico – que é a matéria e a razão de ser desses escritos.
Talvez,o leitor ou a leitora estranhem o título da série que abro com a crônica dessa semana “Cabral descobriu o Brasil?”. Mas de que Cabral estaria a falar? Poderia perguntar-se o leitor ou a leitora. E de que Brasil estaria a falar? Insistiria você mais atento, atenta.
Em “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, que sinto ressoar com sua densidade também essas questões no verso: “Brasil,meu Brasil brasileiro”.
E descortino no tom outro elemento incontornável: voltar ao Cabral (Qual?) e buscar compreender que Brasil foi aquele descoberto em 1500 lido agora por muitos de nós de maneira e intensidade diferentes. (Por favor, caro(a), não tenho a presunção de fazer um tratado histórico nas crônicas seguintes, muito menos nessa!).
E buscar compreender que Brasil é esse descoberto diariamente por cidadãos e cidadãs brasileiros. E pelo Cabral que toparmos por aí…
O Brasil já foi índio; branco; mulato; negro; mas, porém, ainda não se apresenta como país de negritude maciça e intensa, quem sabe por medo de “denegrir”sua imagem,ou algumas delas vendidas para outras culturas.
Quando escuto amigas dizerem para mim : “- Não consigo não ver você como mulher negra!”. E junto a isso, quase concomitantemente como a tecnologia das redes sociais em forma de whatsapp permite, escuto outra sinalizar que tem “fotos em que estou quase loura. Choro e rio, por razões diferentes, percebendo que nesse colorismo racial histórico (Kabenguele Munanga) também residem percepções diferentes de descobertas do Brasil, do elemento brasileiro, lá do passado e de agora. E que fique claro que amo minhas amigas. Mas sei que devo buscar forças para enfrentar o macho branco, de discurso articulado, que se sente no direito de definir minha negritude para e por mim, com implicações para a circulação literária de minha obra literária. E novamente me ocorre a pergunta dentro da tese: Esse cidadão já descobriu o Brasil? Que Brasil brasileiro esse “Cabral” descobriu?
Nesse caminho de escuta, agradeço àquelas contradições surgidas, pois despertam alguns dos medos acerca de uma subjetividade em trânsito que manifesto no cotidiano. O medo, fantasma também, de acreditar na mulher “parda” das certidões de registro mais antigas que procuravam não dar a ver que esse colorismo racial, chamo atenção, como ponto de fuga da dificuldade da cultura brasileira em lidar com a negritude.
Saber embranquecer foi uma arte bastante recorrente nos retratos de certa época, o que é muito diferente de saber embranquecer os cabelos, etapa do envelhecimento e da história humana. Recordo que recebi notícias do processo de embranquecimento de algumas personalidades da história literária em uma visita feita à Academia Pedralva de Letras e Artes na querida cidade de Campos dos Goytacazes- RJ. Visita carinhosamente acompanhada pelo presidente e acadêmico Carlos Augusto de Souto Alencar que, de modo atencioso, explicou ao grupo e confrades da ALB, em sua maioria de fora de Campos, a arte do retrato que contribuiu para o embranquecimento de homenageados, Nilo Peçanha fora um deles.(Confesso que não sabia desse denso detalhe).
Então, leitor e leitora, por hoje trago à luz somente esse “incontornável” como o dado com o qual todos teremos de lidar mais cedo ou mais tarde, como aquele tipo de situação que surge em nossas vidas e nas quais somos incitados a pensar e a agir, quer por uma ação efetiva, quer por omissão.
“Meu” incontornável no momento me convoca a encarar e dar contornos mais claros ao discurso autoritário que quer definir minha negritude, assim como a partir disso acredita ser detentor do poder de um veto por exemplo,em torno da inclusão ou exclusão de minha identidade como poetisa negra e mulher negra militante.
Que Cabral é esse que impõe invisibilidade a minha negritude?
Não estou sendo clara ainda, caros leitores, caras leitoras?
Peço desculpas. Mas a intenção é caminhar nessas linhas com reflexões em torno do que significa determinar quem é ou são os poetas negros e poetisas negras de nossas letras(?).
Já passei por muitos vetos, muitas situações excludentes: de gênero, classe social,de raça, de religião, geracional,estético-literária,enfim, no varejo e no atacado. (Atacado, refino a expressão, como bem me advertiu e lembrou uma das queridas e atentas amigas, dobra deleuziana de meu segundo nome, Prof. Dra. Rose (CAP-UERJ): discriminação na “interseccionalidade” termo que também dá título ao importante livro de Carla Akotirene.
Você já pensou sobre isso? Já viu esse fantasma, nem que seja de relance nos corredores da vida? (Confesso que aceito de bom grado o corrimão em forma livro pra subir e descer pelos meandros do pensamento humano).
Sei que pode ser tentadora a leitura dessa crônica, ao falar em acúmulo de experiências de exclusão, no viés psicanalítico vislumbrado, vislumbrando um campo fértil sobre a questão da rejeição categórica, responsável por traumas, às vezes, transformados em monstros fantasmagóricos. No plano psicológico, também renderia pensar a aceitação. Sim, o banquete está posto, leitor(a).
E você, tem fome de quê?Tem medo de quê?
Assim, despeço-me com um poema, já publicado em livro impresso, em 2018, no Brasil e em
Portugal, na antologia “Vozes Portuguesas”(Literarte).
Até a próxima semana!
DO PAU AO BRASIL
Ainda ouço defesas e ataques
à modernidade ,à liberdade
de criação, de expressões e sotaques
Sigo entre signos, sinos e sonhos
distante do coitadismo ,do abuso
e da arrogância desinformada
Minha bandeira é a cidadania
plena de vida e sóbria alegria
Nada de violência contra maiorias ou
macro minorias discriminadas
Sobre os moleques fanfarrões – ei!
Vão andar de carros de luxo por avenidas
embustes em exibição.
Meu pau não é de arara
É Brasil, verde e da arara – ei!
Mas se é pra voltar no tempo
retorne, sim, aos poetas,livres ,marrentos
Aqueles que abriram versos e contratempos
sem preconceitos,fardas ou manuais!
Enquanto uns plantam ordens e ódio
Outros, comigo, semeiam contra tiranias
livros,mãos dadas, e rimas
Nem vem que não tem pra você – ei!
Pau de arara ou Brasil sem estima.
Desenreda, me erra e encerra
essa resenha da força,do grito
da ameaça e vil guerra
Minha quimera constrói afetos
respeita gays,negros,pobres e domésticas
Não é só ideia ou fantasia
Minha quimera é a mania
de gostar de gente,de cuidar do outro
da outra,de quem nem sei quem é
Ela pensa alto a vontade de ser outro
ser arte e moradia – ei!
De pau macho machista, estou farto, farta
Quero meu pau Brasil,vivo e descoberto.
Angeli Rose, escritora, é D h.c(FEBACLA) e Ph.D em Educação (UFRJ), Dra.Letras (PUC-Rio), pesquisadora, poeta e ativista cultural premiada, terapeuta social e facilitadora holística (UNIPAZ-RJ). É membro de diversas associações e academias, sendo vice-presidente da ALB/Campos-RJ. Foi agraciada com vários títulos honoríficos com destaque para a Medalha Marielle Franco, categoria “Mulher empoderadora”- (Literarte/Casa Olodum,foto 2018). Autora de BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA DE UMA MULHER PANCADA- Editora Bonecker, além de ter participações por coautoria em antologias nacionais e internacionais sendo a mais recente: “Registros femininos- Coletânea de autoras brasileiras contemporâneas”-Editora Chiado books,2020.
Ótimas reflexões e nos ajuda a pensar em nossas experiências ou de pessoas próximas que guardam a palavra, o grito, nem resmungam. A coragem de mostrar tais situações vividas dia a dia só nos encoraja também a agir. Se temos medo e fome de transpô-lo o texto é uma degustação de como é bom vencer esses imaginários fantasmagóricos do preconceito.
Obrigada pela leitura atenta e rigorosa.😷🙋🏽♀️
Excelente texto, com um jogo de palavras que brinca com elas, fazendo nosso pensamento ir e vir de maneira muito sutil, porém com conceitos muito profundos em meu cotidiano. Parabéns!
Obrigada pela leitura atenciosa.😷🙋🏽♀️
Gostei muito do texto. Só senti que, como iniciou argumentando sobre a pandemia, poderia finalizar o texto com essa reflexão e relação com que traz à tona os diversos ‘Cabrais’ pelo Brasil afora, na sequenciada mistura mística de fantasma, seres invisíveis e negritude brasileira. Essa relação de incógnitas e descobertas me fascinou bastante. Parabéns pelo belíssima Crônica.
Assenção Pessoa, uma humilde professora, aprendiz de escritora com alguns livros já publicados, embora tenha utilizado uma linguagem simples.
Sou de Itapecuru Mirim, MA.
Perfeito,cara leitora,os caminhos para tecer um texto são vários e inesgotáveis. Obrigada pela leitura atenta. 😷🙋🏽♀️
Que texto lindo, perfeito e inspirador. Me emocionei em várias falas suas que não deixa morrer o respeito e o valor que cada ser humano traz em sua individualidade! Parabéns e gratidão por sua crônica que me acordou muito mais forte nesta manhã! Um grande abraço.