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Cabral descobriu o Brasil? (III) – Angeli Rose

Cabral descobriu o Brasil? (III)

                                 Por Angeli Rose

A semana foi um pouco difícil e, ao contrário do que possa parecer, foi também, difícil escrever essa coluna, pois as notícias de perdas significativas como as de Rubem Fonseca, Alfredo Garcia Roza, Moraes Moreira, deram a ver o fantasma rondando sobre nossas cabeças. Aquele fantasma de que venho paulatinamente falando a cada crônica. Há, inclusive, a perda da paz, que talvez seja a pior, quer por falta de dinheiro, vendo os boletos se acumulando, quer por manifestações políticas absolutamente equivocadas em torno do pedido de cerceamento de nossas liberdades.

É possível que o leitor ou a leitora estejam até vivendo mais de perto as perdas que a pandemia vem impactando em cada vida, cada cidadão, daqui do Brasil e do mundo. Mas é igualmente significativa toda a movimentação de solidariedade que estamos a presenciar entre nós, cidadãos encarnados nesse momento histórico do planeta.

Entre paredes de meu apartamento,  assisto por internet ou tevê aos inúmeros acontecimentos, eu diria bons e ruins, ou aceitáveis e inadequados. Entretanto, o que mais está me tomando e impactando é ver a relevância do momento, como já disse,  histórico, em que estamos mergulhados. É de agradecer que possamos testemunhar, vivos, as mudanças latentes e a potencialidade em tudo o que ocorre, e isso concorre para transformações determinantes no modo de vida de habitantes desse planeta.

Sei que o leitor ou a leitora poderão lembrar-se das dificuldades que os profissionais da saúde estão enfrentando, muitos, sem os materiais de EPI necessários, o que coloca em risco a vida deles e dos mais próximos, quando não é possível isolar-se dos familiares. É capaz de citar a suscetibilidade de algumas mulheres à violência doméstica nesse período de isolamento. A precariedade da população de rua existente em vários países do Ocidente, de onde temos notícias mais frequentemente. Ainda será mais assertivo ao lembrar que todo o assistencialismo manifesto não afeta estruturalmente a desigualdade. Talvez. Talvez até tenha alguma razão, as mãos sujas do egoísmo devem evitar passar a página do Poema Sujo, de Ferreira Gullar, para dar cabo da leitura daquela obra singular na história da literatura brasileira.

No entanto, cada vez que me recordo de um poema como Mãos dadas, de Carlos Drummond de Andrade – os leitores devem lembrar – reafirmo a força simbólica da literatura e, claro, por extensão, da arte: O presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Força simbólica que é capaz de transmutar-se em ações efetivas, mesmo quando estamos impedidos de dar as mãos ou abraçar quem amamos, por recomendações expressas da OMS e de autoridades locais, contra a outra força invisível, o Coronavírus.

E nessa companhia, de “mãos dadas”, é preciso saber que toda iniciativa em prol do bem estar alheio amplia a nossa imunidade. E é nisso que o momento histórico pode ser de fato transformador: para estar bem protegido e imune, o leitor precisa compreender que, fazer algo pelo outro, seu vizinho de porta ou vizinho de luz, é o que pode salvar a sua vida e a de outrem. Será quando a teia transmutar-se-á em rede. E não queremos ser testemunhas de um tempo presente inerte, passivo, cruel, imagino. Queremos que todos, todas, se sensibilizem com as necessidades básicas, por exemplo, de todos. Alguns têm como necessidade básica o arroz, o feijão, a água, o sabão; outros terão como necessidade básica o carinho, a atenção, outros ainda, precisarão de liberdade para ir à varanda, ao pátio e cantar ou tocar o instrumento que souber. São carências diversas que dão a ver a amplitude da diversidade humana. E todas são legítimas nesse e em outros momentos de nossas vidas.

Então, leitor, leitora, busque compreender o contexto atual impactado por esse vírus como elemento desviante do espectro do fantasma que está pairando sobre nossas mentes e corpos. Certamente, algumas descobertas surgirão sobre si e sobre os outros, sobre o lugar onde vive e sobre o país em que vivemos, além do planeta que nos aguarda para receber sua atenção. O medo, de morrer, de sofrer pela perda de alguém, é uma possível descoberta, já que ele exige o enfrentamento da nossa finitude. E queiramos, ou não, nos parece intolerável lidar com a vida tendo a certeza da morte. (Aprendi a pensar sobre isto e outras questões com a leitura do Medo líquido, de Zigmunt Bauman).

Mas há outros medos: o medo de que não tenhamos mais a mesma importância para o outro que aprendeu a viver sem minha companhia física frequente; o medo de não ver mais a cidade querida como ponto de encontro entre os amigos; o medo de que muito do que a mídia televisiva, radiofônica ou qualquer outra tenha razão sobre a ferocidade do COVID-19; o medo de que talvez, tudo isto seja um exagero e você esteja perdendo o sol lá fora, a vida que segue aparentemente para além de sua janela. Enfim, medos sobre medos, num efeito cascata capaz de formar um pequeno lago de dúvidas e incertezas.

Tudo isto, leitor, leitora, também me acometeu em algum momento, acomete algumas amigas que ligam para mim e dizem: “- estou com medo”. E digo com outras palavras “tome a minha mão”, “não temas”, “estou aqui.” E sigo depois pra cozinha a fazer uma nova receita descoberta na internet, para por a mesa para mim, fotografar e compartilhar a ideia com as amigas que não posso visitar nesse momento. Também por isso foi difícil iniciar e elaborar a crônica da semana.

Segundo um dos maiores filósofos vivo da contemporaneidade, Jacques Ranciére, em O espectador emancipado, há diversas formas de adquirir saber, a clássica é através da leitura, porém, há outras formas. E é possível que o leitor, a leitora, descubra isto nessa quarentena forçada, ou mesmo depois dela, que a intimidade com a família, quer por whatsapp, quer por vídeochamada, quer por compartilhar o mesmo cômodo ou o mesmo domicílio, que saber sobre si, sobre o outro, sobre a cidade em que mora, ou sobre as instituições com as quais lida, poderá ser um saber advindo das interações mais aprofundadas. E dará medo perceber que se falou muito pouco sobre o amor antes dessa pandemia entre vocês, entre nós. Dará certo receio entender na solidão quantas vezes deixou de dar a mão como enamorada, ou como cidadão. Dará medo enxergar a possibilidade de perder um ente querido ou um amigo, porque aquele orgulho de vê-lo conquistando o sonhado título de doutor, médico especialista em boa vontade, agora pode representar máxima exposição ao perigo. Dará vergonha de si na quietude escutar a voz interior chorando, pedindo um abraço, um “bom dia” apenas.

Mas, nada disso será maior do que toda a esperança de um futuro maior, diferente do agora, um futuro em que ao olhar para si mesmo, ou para seus filhos, amigos, parceiros, sócios, desconhecido, terá a certeza de que, por dentro daqueles seres, há alguém que também pode ter experienciado as mesmas dores, os mesmos estranhamentos, os mesmos preconceitos, as mesmas descobertas, as mesmas angústias. E só a descoberta da possibilidade já será afortunada para que você se conecte com mais alguém além do seu mundo de antes.

E, depois, numa parada qualquer em seus dias vindouros, o giro do olhar, numa pirueta de pensamentos, por exemplo, o país que você verá será outro. Talvez seja (e desejo que sim) um país de cidadãos mais conscientes de que é necessário fazer para que mais pessoas possam viver em melhores condições de vida.

Quem sabe, descobriremos novamente o Brasil dentro de nós? O Brasil que anseia por igualdade social; por solidariedade, por justiça social, à custa de olhares e percepções realistas, porém, voluntariosos.

Então, os fantasmas, seja do Corona, seja da desigualdade, do abandono, ou da arrogância, poderão ser mais conhecidos de todos, sentidos e enfrentados, como questões que atingem a todos, a todas, à sociedade em geral.

Despeço-me com um poema ainda inédito em livro, no prelo, a sair na Antologia Amo Amar Você, acompanhado de vários outros colegas talentosos, sob a organização da amiga Sol Figueiredo:

                  POÉTICA DA PAZ

Quando a porta não bater mais na cara

Quando a vizinha não gritar socorro

Quando nenhum fuzil subir o morro

Quando a água não for fonte tão rara

Dias virão: educação sem vara

sem correntes, foice ou capataz

 Outro tempo de alegrias e paz

Então, a manhã despontará clara

Mas se prevalecerem vozes más

Ou ninguém ouvir o canto da Iara

Vazio, o coração guerra declara.

Por isso, já a intolerância sara

e prepara o pombo-correio da paz

e entrega ao mundo o amor audaz…

Angeli Rose é colunista no JCB às quartas-feiras, professora universitária, poeta (ganhou em 2018 e 2019 prêmios por suas produções poéticas); pesquisadora, carioca, geminiana, autora de Biografia não autorizada de uma mulher pancada, um cordel contemporâneo, infanto-juvenil, sobre a diversidade, e de e-books técnicos produzidos a partir das pesquisas desenvolvidas no doutorado em Letras (PUC-Rio) e na especialização em Jornalismo Cultural (UERJ). É Vice-presidente da ALB/Campos dos Goytacazes e membro correspondente da AMBA, entre outros títulos honoríficos com os quais foi agraciada.

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