Cão Marks e Eu
Por Luca Creido
Colendos pares e nobres advogados que tutelam a lide ora em tela, gostaria de iniciar meu voto acompanhando parcialmente o Desembargador Relator Caim Vomes, chancelando a partilha dos bens do casal. Todavia, divirjo unicamente em um ponto, pois vejo aqui, excelências, que a família que se desassocia nos presentes autos possui um cachorro, que… um minuto excelência… conforme folha 18, verso, se chama Lei… Lei?… Leí?… Isso, Lêi… Deste modo, gostaria de pedir vênia ao relator e não corroborar com a entrega da cadela do casal ao sr. Elias, mesmo que a sra. Antônia não deseje ficar com o animal.
Excelências, fundo meu voto na simples ausência de manifestação da cadela quanto a quem gostaria de ficar. Alguém perguntou se, de fato, ela preferia o sr. Elias? Se sim, não está nos autos. O que eu vejo, excelências, é que fora a cadelinha tratada como mera coisa, assim como a casa, o carro, os móveis, os discos do casal. Será que não pode ela opinar sobre seu futuro, só por ser um animal que pertence, supostamente, ao Elias? Aliás, quem é o real dono da Lêi?
Acredito, excelências, que devemos retomar os debates iniciados por Aristóteles. Este grande filósofo, que eu nunca li, mas já ouvi falar muito, – e aqui peço vênia para citá-lo sem aspas mesmo, já que não tenho certeza se foi ele que disse isso ou eu li no Facebook – pronunciou que o ser humano é um ser racional, enquanto o animal, desprovido de razão, não tem vontade própria. Veja bem, presidente, não afrontando este iminente filósofo grego, vejo que a razão não lhe pertence! Como assim não tem vontade a Lêi? Solte ela no chão entre um pé de alface e uma carne, e eu tenho certeza que ela vai na picanha! E se a soltar entre as partes litigantes? O que ela fará?
Entretanto, concluir que ela tem vontade não resolve nosso problema, porquanto cria um maior: até que ponto devemos seguir as aspirações da Lêi?
Trata-se de algo muito perigoso! E eu sei, já que tenho um animal também. Claro que ele não se chama Lêi, pois eu possuo noção de ridículo. Todavia, assim como a cadelinha, o Cão Marks, meu cachorrinho, tem anseios próprios.
Por exemplo, quando me casei, minha senhora levou o Cão para nossa casa. Claro que não gostei! Eu até tinha simpatia por ele, quando namorávamos, e ele ficava na casa dela. Contudo, é melhor ter o Marks longe de seus bens, uma vez que ele tem um grave problema: não pode ver um sofá, que nele urina.
Já que eu gostava muito do meu sofá italiano, belíssimo por sinal, comecei a levar meu cachorrinho para passear de manhã cedo. Fiz isso por causa da dica que vi em um jornal. Não acreditei muito, mas, uma semana depois, percebi que ele parou de urinar no meu sofá!… Sim, excelência, parou. Eu o domei, enquanto ele me domava…
Entretanto, quando tudo estava acertado, houve um problema: minha esposa se machucou no trabalho, quebrando a tíbia e o perônio. Ficou de cama 45 dias e eu pedi então licença para acompanhá-la. Como eu ficava muito tempo à toa, já que tinha enfermeiro e eu não aguentava mais vê-la, comecei a levar o Cão Marks para passear duas vezes por dia: de manhã e de noite. Com o passar do tempo, quando eu saí da minha licença, sete meses depois, parei de levá-lo de noite, retornando a rotina de uma caminhada por dia.
Vejam bem, excelências, eu estava exaurido. Naquela época, ante o cansaço de ter que trabalhar todas as terças e quintas, assinando o que meu assessor fazia, eu só conseguia levar o Cão de manhã. Contudo, o serumaninho não aceitou bem isso. E sabe o que aconteceu? Ele voltou a urinar no meu sofá.
Tentei fazer de tudo para ele parar: joguei spray educador, comprei tapetinho higiênico, até veneno eu coloquei na ração, no entanto, nada mudou… Dessa forma, excelências, voltei a levá-lo duas vezes por dia para passear…
Enfim, do que a gente está falando mesmo?… Ah, sim, claro.
Bem, termino meu voto indagando vossas excelências sobre o que devemos fazer com Lêi? Será ela um mero objeto, sobre a qual as partes podem litigar? Claro que não! Agora, devemos cumprir o que pretende a cachorra? Também não. Ela é como o Cão Marks: ele não só tem vontade própria, mas sabe impô-la sobre a nossa! Então, devemos controlá-lo, levando para passear, para que se esqueça do meu sofá…
De igual forma devemos fazer com a cadelinha do casal! Se cumprirmos sua vontade, poderemos, inclusive, ter que reatar este casamento, pois certamente a Lêi quer que os casais fiquem unidos. Todavia, se não houver mais divórcios, qual seria o motivo de estarmos aqui?
Se seguirmos a Lêi, ela nos destruirá… Por isso, acredito ser melhor fazer a partilha dos demais bens e deixar a Lêi em algum terreno baldio perto do Anel Rodoviário, para que fique longe de nós com suas pretensões.Ante o exposto, manifesto meu absoluto apoio ao voto do Desembargador Relator, com as ressalvas feitas, pedindo, inclusive, excelências, que me perdoem por ter que retornar à casa mais cedo, em meio a esta colenda sessão, pois, como choveu, não pude caminhar de manhã e o Cão Marks deve estar revoltado.
Luca Creido (ou Jucicriedo)
nasceu em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Formou-se em direito e em letras, ambos pela UFMG. Advogou por um curto período e, atualmente, é Delegado de Polícia Civil, professor universitário e escritor, tendo publicado, dentro outros, o livro “Pucadiquê? Coisas que eu não queria esquecer…” Regularmente, publica
crônicas no seu site http://lucacreido.com.br/.