“Vejo o antes e o depois de um corpo, e isso me motiva”
Por Redação Jornal Clarín Brasil JCB – 12/08/2020 às 17hs19min
Naquele dia, Ricardo desabou e chorou que nem um bebé. Não por causa do cheiro dos gases saídos das entranhas nem por ter de lhe extrair o sangue das veias. Não por lhe injetar aquele líquido cor de rosa nem por ter de lhe entupir os orifícios com algodão. Foi porque, em tempos, afirmou que o faria.
Pelas mãos de Ricardo já passaram cerca de 8 mil corpos de todos os tamanhos, cores e formais possíveis. Corpos já sem alma. Mas é aquele que não lhe sai da cabeça. Pertencia a um ex-colega de trabalho e amigo que o ajudara várias vezes nesse ofício de dignificar o que ficam. Foi a ele que, um dia, inocente, disse: «Ainda vou preparar o seu corpo!». E preparou.
Ricardo Morais tem 11 anos na arte de cuidar dos que morreram. De vida já lá vão 38 anos de idade. Casado, pai de quatro filhas. É amante do bom futebol, adepto de uma boa cerveja e tanatopraxista, que é a profissão de quem deixa um cadáver preparado, conservado e desinfectado para ser depois velado, antes do fim que se dará ao corpo, seja cremação, ou sepultamento.
“Vejo o antes e o depois de um corpo e isso me motiva”
“Entrei neste ramo em 2005. Trabalhava num armazém e ganhava R$2.550,00 por mês. Fizeram-me a proposta para ir para uma agência funerária por melhor salário. Pensei um pouco se aceitaria,e por fim, fui”, recorda.
Três anos depois, conheceu um francês, com quem aprendeu a arte da tanatopraxia, apaixonou-se pelo ofício e foi para Barcelona, Espanha, para aperfeiçoar seus conhecimentos. “A minha filha mais velha já era nascida e claro que é sempre complicado”, assume. “Mas o gosto pela profissão também, e muito”. Passou 672 horas em estudos e após muita dedicação, conseguiu o diploma. Nesta incumbência de dar aparente vida a quem já a perdeu, é o luto da família que mais importa e “o mais gratificante”. “Também já perdi familiares e sei o que é estar nessa situação. Quero que um falecido esteja com ar tranquilo e que haja higienização do corpo para que família e amigos possam fazer o velório em segurança”, explica Ricardo. “Vejo o antes e vejo o depois de um corpo. Isso me motiva”, garante.
“Agora está tudo diferente na arte da tanatopraxia, por causa do Covid-19“
O que faz passa por, de forma muito resumida, conservar o físico e permitir um “adeus digno”. Assim era até surgir a atual pandemia de covid-19. Mas tudo mudou. “Se as pessoas que andam na rua em bando soubessem…”, lamenta, recordando “o primeiro covid” que lhe chegou, “vindo do Hospital próximo da capital”. “Chorei muito“. Um funeral já é um ato triste. Agora mais ainda. Não há nada… Não há beijos, não há um último carinho. “Eu estava habituado a fazer uma coisa e agora está tudo diferente”. Nesta fase em que o novo coronavírus encontra-se em estágio de pandemia, a tanatopraxia se mantém limitada, e acontece, geralmente em casos de autópsias – e, esta, está reservada a casos especiais, como os de crime, exemplifica. No mais, é, ir buscar os corpos, que são embalados em dois sacos, e depois acondicionados, nas urna,e vão diretamente para o cemitério.
Há filhos que não viam os pais há anos e não tiveram oportunidade de os voltar a ver
O que Ricardo tem feito, para cumprir sua missão e atenuar o sofrimento dos familiares, é tirar uma fotografia da etiqueta que acompanha e identifica cada corpo. “É uma coisa minha”… Mostro aos familiares para que tenham a certeza. É uma maneira de lhes darmos descanso”, justifica.
A boa intenção não está, no entanto, isenta de riscos, já que a etiqueta pode vir errada do hospital. É por isso que, apesar de a Direção-Geral de Saúde recomendar a cremação, Ricardo Morais acha mais pertinente não fazê-la. Afinal, “levando um cadáver para o forno, não há hipótese de voltar atrás caso venha a descobrir-se um engano”.
“O meu pai maquia e penteia pessoas mortas“
A preocupação com a família reflete-se em casa, com a sua própria família. Ricardo não esconde das filhas – de 12, 5, 3 anos e 15 meses – a sua profissão. Recorda o dia em que teve de ir à escola da mais velha para que todos os alunos apresentassem os pais. “Fiquei apreensivo. Não pelo que faço, porque nisso tenho muito orgulho, mas porque a minha filha podia dizer algo que assustasse os colegas”, lembra. Acabou por conversar com a professora, que o tranquilizou. “As crianças se entendem, e ela terá a própria maneira de explicar”, disse a professora. Assim foi; “O meu pai faz maquiagem e penteia pessoas mortas”, disparou a filha. Todos as outras meninas ou meninos acharam “normal” e Ricardo teve a confirmação de que está realizando um bom trabalho. “Costumo lidar com a morte diante delas de forma natural para que entendam o que é”, explica. E conta de imediato o momento de um outro dia que também não esquece. Foi quando levou a filha de 5 anos ao funeral da avó, cujo corpo o neto tinha “preparado”. “Gostei tanto de a ver olhar para a urna… Disse-me “Papai, parece que ela está dormindo”. Ela disse “parece” porque ela sabia que não estava», explica.
O creme hidratante no final
Obviamente, o Covid-19 tem tido impacto na quantidade de trabalho e, claro, no retorno financeiro que os profissionais levam para casa. Apesar de os funerais não terem diminuído, de há dois meses para cá houve uma “queda de 70 a 80 por cento” de serviços de tanatopraxia, extra que, no ato da contratação, Ricardo cobra a R$450,00 cada. «Depende de cada funerária. Acho que esse é o preço justo. Há quem peça R$600,00, R$ 700,00, e até mil, apontando diferentes serviços no ato, alerta: para a diferença entre tanato estética, que consiste apenas na maquiagem do corpo o que Ricardo também faz, e a tanatopraxia, que desinfeta o corpo, elimina os cheiros e as alterações físicas pós-morte. Quando se faz tanatopraxia, raramente é preciso estética, porque os produtos que usamos para a desinfeção já dão um ar bastante normal a um cadáver. Aplico apenas um pouco de creme hidratante no final, resume.
Acredito muito em espíritos
E como se encara a morte lidando com ela tão de perto? “Eu não sou religioso”, responde Ricardo, quando colocamos a questão. Mas, depois de alguns segundos de silêncio, sugere: Acho que qualquer coisa acontece. “No que eu acredito muito é em espíritos”, acrescenta. Sem receio do que possam pensar dele, evoca uma das várias situações engraçadas pelas quais já passou. “Tinha acabado o curso há pouco tempo e estava na minha sala de trabalho. Tinha três mesas e havia um rádio sempre ligado, para fazer companhia. Nesse dia, o rádio desligava e ligava, desligava e ligava”,Conta rindo. “Eu, em tom de brincadeira, disse ao meu colega para dizer ao sr. Antônio, que era o morto que estava lá, para parar com aquilo. E aquilo parou”, conclui. A sensibilidade para o misticismo vem, de quando era criança e já o levou a procurar quem o ajude a lidar melhor com os que partem. “Dizem que estou protegido, que eles [os espíritos] não me abandonam. A energia que tenho é deles. Pratico um ato bom. Estou a arranjá-los, não estou a fazer-lhes mal, acredita.
Há, porém, um porém. “Alguns, que normalmente perderam a vida, pouco tempo antes de me serem entregues, culpam-me pela morte deles.
Fontes: Impala notícias
Ótimo trabalho!
Após perder muito tempo na internet encontrei esse blog
que tinha o que tanto procurava.
Parabéns, Gostei muito.
Meu muito obrigado!!!