Por Jornal Clarín Brasil JCB – Belo Horizonte em 30/09/2020 às 08hs53mins
ENTRE O IMEDIATO E O MOMENTO SEGUINTE
Angeli Rose
Dona Maria é camelô aqui na esquina de casa. Ela vendia bolsas, bijuterias,
guarda-chuvas, entre outros produtos femininos antes da pandemia exigir o
isolamento social. Há anos que ela sustenta a pequena família formada por ela, marido e uma filha viva, por meio da renda obtida com as vendas do trabalho informal.
No nosso país muitas famílias, até maiores, vivem desse tipo de
atividade. Aliás, na América do Sul esse tipo de trabalho mudou a paisagem das ruas de muitas cidades, especialmente das metrópoles.
Os especialistas em geografia urbana, paisagismo, arquitetos, para citar apenas alguns ligados do campo, vêm traçando estudos que comentam como essa paisagem urbana tem espelhado, mais ou menos criativamente, a desigualdade social nos países sul-americanos, assim como as relações de poder que acentuam tal desigualdade. Numa consulta rápida de imagens dos grandes centros de alguns países como o Brasil é possível ver ruas inteiras desenhadas pelos camelódromos (solução recente da década de 90 do século XX) interferindo no ritmo citadino do vai e vem cotidiano. São paralelas traçadas por cangas, tabuleiros improvisados, ou barracas padronizadas que geram faixas de proximidade e distanciamento entre transeuntes. Mas tudo isso sumiu da paisagem atual, impactada pela pandemia em muitas cidades sul americanas.
É fato que também as cidades terão o antes e o depois da pandemia do Coronavírus. Até que voltem às calçadas ou às esquinas, esses ambulantes e vendedores em geral terão de enfrentar o hábito de consumo modificado.
Os camelôs davam conta da popularização de preços e mercadorias (ilegais ou não), de interações menos formais – é diferente entrar numa loja em termos de postura e de relações pessoalizadas, como a Dona Maria que conhecemos e encontramos em espaço demarcado a ponto de em sua ausência percebermos sua falta, exatamente como se a paisagem estivesse alterada.
Também, não menos relevante, esses trabalhadores da economia informal solucionavam(temporariamente) a dificuldade das sociedades nos sistemas atuais de absorverem todos os cidadãos no trabalho formal e regular. De certa maneira, a autonomia na informalidade mascarava e mascara a perda de direitos importantes para os trabalhadores da contemporaneidade. Por fim, davam conta da imediatez do desejo de consumo, ainda que fosse para resolver problemas que o inesperado gera no dia a dia. Quem nunca saiu em busca de um guarda-chuva em meio a um inesperado toró de verão? Quem nunca comprou um lencinho de bossa diferente para compor o look de última hora, na saída do trabalho para atender o convite e marcar presença no happy hour dos novos amigos feitos no Tinder ou num grupo de interesse de uma rede social?
Neste ponto cabe uma digressão definitiva, isto é, o desvio intencional para tratar da imediatez como tema dessa crônica e desejável deriva. Ao serem virtualizadas as relações em geral, com as exceções de lives e interações nas redes como whatsapp e similares, além dos aplicativos de relacionamentos na evolução de interações entre membros, os demais espaços virtuais de interação através de sites, blog e análogos prescindem da imediaticidade para desenvolverem conteúdos e cumprirem seus objetivos, por exemplo, de vendas dos mais variados produtos. Embora, deva ser observado que ser rápido na devolução de solicitações por parte dos produtores e vendedores seja uma qualidade a ser apreciada, sem desconsiderar que a autonomia é o fator característico e de sucesso do ambiente de vendas digitais.
Então, naquela questão inicial observada sobre a mudança de costumes gerada pela pandemia e seu impacto com a determinação de isolamento social é possível que Dona Maria fique mais restrita ainda aos passantes de seu bairro com algumas exceções de um ou outro visitante ainda movido pela imediatez da necessidade de algum produto a ser adquirido de última hora.
E em que isto se torna relevante em nosso tempo e em nosso cotidiano neste
momento? Há que se pensar e refletir, mas logo de primeira pode-se pensar que toda a aceleração a que estivemos expostos nas últimas décadas, desde a segunda metade do século passado quando os primeiros experimentos e as primeiras criações da cibernética colocaram em xeque o ritmo de vida a que vínhamos exercendo, ainda que tenha sido por motivos bélicos inicialmente.
Muito se discutiu, comentou-se e comprovou-se acerca da aceleração do cotidiano. Algo nem tão novo, se lembrarmos dos processos de industrialização e desenvolvimento na história do Ocidente, mas em específico no Brasil. Algo nem tão novo que as artes não tenham tratado com primor, para evocar as artes plásticas e a literatura das vanguardas europeias, por exemplo. Ocorre-me transcrever alguns versos do poema “pobre alimária” de Oswald de Andrade sobre esse processo de aceleração que falava de um Brasil dos “modernistas”: O cavalo e a carroça/estavam atravancados no trilho/e como o motorneiro se impacientasse/Porque levava os advogados para os escritórios/(…). O poema recebeu um estudo hoje clássico do mestre Roberto Schwartz (em Que horas são?), professor e crítico literário, o qual mostra que através da simplicidade dos termos do poema há uma densa visão do Brasil da época, década de 20 dos 1900
Aliás, é próprio dos artistas, além de serem as chamadas “antenas do
mundo”, são importantes intérpretes estéticos do país e do mundo. E não só do seu tempo. Isto é um fator de caracterização de muitos clássicos, se pensarmos em “por que ler os clássicos?”, já parafraseando a clássica coletânea de ensaios do escritor italiano Ítalo Calvino. Mas aqui recorro ao estudo de Schwartz para fazer um breve comentário e indicar a dissonância entre o cavalo, a carroça e o
bonde, numa gradação que dá a ver o desenvolvimento e a modernização do país em certa sentido, o que também implicou certa aceleração do cotidiano.
E há que se considerar que a modernização do país também inclui a “modernização dos sentidos”, à luz de outro crítico e professor de Stanford (EUA), Hans Grumbrecht com seu livro de mesmo nome da expressão utilizada. (Desculpem leitores, se acumulo referências como um surfista que desliza sobre as ondas. Todavia, gostaria que vissem esse “vício” como uma forma de fazer uso de “migalhas de pão” que marcam o caminho pela floresta de leituras feitas – como João e Maria – e assim oferecer aos leitores um mapa tracejado dos textos com os quais dialoguei e pelos quais me deixei acompanhar nesse “tarô” jogado a cada semana, que é fazer uma crônica).
Para nós pode parecer distante a interpretação dada ao Brasil por Oswald de Andrade se considerarmos o Brasil de agora que entrou no mundo digital, principalmente, pelas redes sociais. No entanto, recorro ao passado para oferecer ao leitor um ponto de apoio, já que no cenário atual também o “palco” se movimenta, chegando a ser giratório. Portanto, no caso da realidade urbana do agora a aceleração é adensada pela movimentação de todos os componentes do cenário cotidiano. Daí que parar para “fixar” um isolamento social por um período pré-determinado, mas com ares de prorrogação de “segundo tempo”, é de tamanho impacto em nossas vidas a ponto de estremecer esse traço característico de nosso tempo histórico, a imediatez (não só para o consumo) de ver os desejos atendidos. E vamos combinar? Os desejos básicos estão na ordem do dia: afetos, arroz, feijão, água, banho, lavar as mãos várias vezes, ter
uma casa para “#ficaremcasa”, etc.
Então, é nisso que a mudança da paisagem urbana com a ausência dos camelôs afeta diretamente os costumes, (e os modelos de negócios, pois Dona Maria pediu a nossa família lençóis para fazer máscaras a fim de vendê-las e, assim, encontrar uma saída financeira no caos da pandemia, para além dos R$600, 00, auxílio emergencial do governo brasileiro). Mudança que impacta os costumes e o comportamento social porque já não dispomos de tudo a tempo e a hora no plano físico com o comércio fechado em algumas grandes cidades, excetuando os serviços básicos como muitos sabem.
A sociedade está sendo convocada, junto com o isolamento social, a se
virtualizar, a incluir a ciência e a tecnologia em seu cotidiano e a se digitalizar de vez. Cabe ainda pensar os disparates em que vivemos: um guri que pula uma vala com esgoto a céu aberto numa de nossas favelas, como brincadeira de menino, poderá fazê-lo com um celular em mãos e acesso ao Facebook ou a um joguinho digital qualquer. Como lidar com isso? Como a escola lidará com isso, depois da pandemia e do isolamento social?
Nada como lembrar outro poeta como o compositor, cantor e ex-ministro da
cultura, o baiano Gilberto Gil na canção “Pela Internet” do álbum “Quanta”: Criar meu web site/Fazer minha home-page/Com quantos gigabytes/Se faz uma jangada/Um barco que veleje (…)”
Entretanto, o simples click capaz de comprar qualquer coisa, ou fazer ver que se“curte” algo, ainda vai levar um bom tempo para inundar o cotidiano de todos os cidadãos. E aquela realidade híbrida do cavalo, da carroça e do bonde do poema do modernista Oswald de Andrade está ressoando nesse exato momento em que temos uma urbanidade igualmente híbrida: os transportes públicos, em escala de massa, e o transporte digital em escala exponencial como é o meio digital.
Lá, a impaciência do motorneiro mobiliza cidadãos para tirarem o cavalo do caminho do bonde; aqui, ao contrário, nossa paciência é convocada como ciência da paz para lidar com a crise gerada pela Covid-19. É o hibridismo de hoje desnudando as relações de poder e perscrutando em cada cidadão, em cada cidadã, seja de que raça, etnia, credo, classe social, geração, nacionalidade forem descobrir a crisálida possível na mudança de critérios que toda crise representa.
Você já parou para olhar pela sua janela o Bem-te-vi que estacionou nela e piou até você cumprimenta-lo? Você já tentou decodificar os gritos da vizinha, se são de pedido de socorro ante a violência doméstica que aumentou no isolamento?
Percebeu quantos caminhões de cerveja andam descarregando no seu quarteirão em meio à pandemia? Permitiu-se sentar e “maratonar” a série mais comentada do momento?
Aproveitou para ouvir aquele concerto que empilhou entre os vários cd’s que ganhou num dos aniversários passados? Ficou em silêncio no escuro do seu quarto para “falar com Deus”?
Enquanto o leitor e a leitora respondem para si mesmos tais questões, ou até aqui nos comentários da seção “Cultura e Lazer” do JCB, apresento um poema, filho da quarentena, e corro para a janela na esperança de ouvir um panelaço:
Dias de Sol
Ele chegou
Piou, piou.
Depois,
piou.
E enquanto não
fui saudá-lo
De lá não saiu.
Então,
voou, voou…
Angeli Rose é professora universitária, pesquisadora,
escritora e poeta premiada. Colunista do Jornal Clarín Brasil JCB às quartas – feiras na seção “Cultura e Lazer”.
É Ph.D. em Educação (UFRJ), Dh.C em Educação pelo Instituto de
Estudos Samaritanos (FEBACLA); Dh.C em Belas Artes pela
CONCLAB, além de ter sido agraciada com muitos outros títulos honoríficos,
como o de Comendadora em Excelência e Qualidade pela Braslíder.
É educadora para a Paz, Facilitadora holística e Terapeuta transpessoal pela UNIPAZ-RJ e oColégio Internacional de Terapeutas (CIT-UNIPAZ). Recebeu este ano o troféu Evita Perón em Buenos Aires como Embaixadora da Paz (LITERARTE). É ativista cultural e atua em prol do “direito à literatura”. Vice-presidente da ALB/Campos dos Goytacazes, carioca e geminiana.