As “produtoras de quimeras” também formam opiniões, influenciam a educação e agem sobre as sensibilidades”
Por Angeli Rose – Academia Mineira de Belas Artes – Belo Horizonte em 07/10/2020
PRODUTORA DE QUIMERAS
Angeli Rose
Pense no que pode caracterizar uma produtora cultural: ela pode produzir e promover ideias, eventos e ações, que incluam a promoção da alegria, do encantamento, de sonhos, de fantasias, entre outros motores que despertem em nós mais vontade de ser e de estar no mundo.
E esse mundo impactado pela pandemia, sim, chegou arrasando o campo cultural. Foi o primeiro em tudo. O primeiro em ser devastado, paralisado e afastado do cotidiano dos cidadãos do mundo. Não foi uma questão local. Em quase todos os países do planeta, a cultura tornou-se o campo de propagação do “mal-estar na civilização” e um “mal-estar” diferente daquele elaborado por Sigmund Freud em 1929, após a experiência da primeira guerra mundial que o médico e “pai” da psicanálise testemunhou. Com seu legendário livro Mal-estar na civilização, publicado em 1930 em alemão (Das Unbehagen in der Kultur) o autor lançava sobre as sensibilidades a tensão entre a individualidade e a cultura. Uma batalha responsável por esgarçar os desejos e até anulá-los, dentro da perspectiva das neuroses que Freud soube captar.
Num diálogo com Freud, Herbert Marcuse escreve Eros e a civilização (1955), uma perspectiva filosófica que acrescenta à questão introduzida por Freud o dado de uma repressão potencializada pelas formas como a “civilização” se desenvolve. Ele foi um dos inspiradores do movimento de “Maio de 68”. Cabe ressaltar que “civilização” para muitos críticos é o sentido de cultura em Freud, isto é, a produção de costumes, tradições, hábitos, artefatos culturais em geral que também expressam as relações entre os indivíduos e a(s) sociedade(s)
Mas por que ir tão longe para apenas falar da ocupação de produzir cultura ou objetos de desejo na cultura? O que, em última instância, uma “produtora de quimeras” faz? Simples, cara leitora, caro leitor, porque se no livro de Freud a dicotomia fica entre querer estar só consigo mesma para realizar suas fantasias, desejos e até utopias e as necessidades da convivência social com horários, protocolos, comportamentos; é interessante pensar que a pandemia impactou tanto o cotidiano e o campo da cultura que gerou o desejo ardente de estar em convivência com as pessoas. Simples? Nada simples, não é mesmo?
“Viver é muito perigoso”, escreveu o sábio Guimaraes Rosa, mineiro e diplomata, projetado no mundo com sua prosa, na voz de Riobaldo do também legendário Grande Sertão: veredas. Então, ficou “muito perigoso” viver até em família. A família que alguns de nós tanto louvamos e defendemos como esteio de nossos mais profundos sentimentos. Fico até pensando que durante muito tempo vamos ficar repetindo: – Foi a pandemia! Ela causou isso! Foi por causa da pandemia que ficamos assim! É, pode ser… Ao menos foi na pandemia do “Corona vírus” que muitas pessoas mudaram de direção na vida profissional, outros mudaram de personalidade até e alguns, de time de futebol. É!
Dia desses escutei meu vizinho vascaíno começar a gritar Flamengo. Pode? Quando o senhor, a senhora, iriam imaginar que o “vira-casaca” ia dar as caras na pandemia? Não tenho dúvidas, foi a “pandemia”! E não para por aí: quem não conhece um caso de uma amiga ou colega de trabalho que passou a anunciar nas redes sociais umas pecinhas de roupas? (porque enjoou do guarda-roupa, ou porque as perdeu, digo ganhou peso durante a pandemia, e perdeu o vestido cintado, por exemplo) E olha que são peças maravilhosas, de marca, caras, de um gosto singular, estilosas – medita você ante tal iniciativa. Sim, foi a pandemia que deu coragem para a amiga ou colega de trabalho tomarem coragem e botarem a cara para gravar um breve vídeo anunciando aquelas lindas roupas! Foi a pandemia também que tirou todas as reservas financeiras e levou todas nós a criar novas maneiras de “produzir cultura” e ganhar algum dinheiro, porque o tomate, a carne e o arroz também arrasaram as economias.
Gente, tudo isso foi por causa da pandemia! Tô insistindo nesse mote, porque ele tem algo de razoável. A pandemia de fato mexeu e impactou as economias dos países abastados ou não. Mas que tal pensar que muitas das máquinas cotidianas estavam funcionando no automático a ponto de esquecerem-se de que trabalhavam para o humano? (Máquina tem memória?) Olha, até onde sei, ela, a “máquina” pode ser programada e, portanto, o homem que a programa poderia estar a esquecer-se do humano em si e no outro, não?
Penso que o tempo vai redimensionar o tamanho da pandemia em nossas vidas. Calma! Não sou dessas que pensa que a doença é uma “gripezinha” e anda, literalmente, por aí nos bares noturnos, ou anda dando festinhas com som alto a ponto de o barulho não deixar uma médica plantonista dormir. Não! Estou no “grupo de risco” Sou obediente. Ou seria “prudente”? E a despeito de todos os interesses em jogo prefiro seguir as orientações dos pesquisadores, dos cientistas e da OMS.
Aliás, me vejo há muito tempo no “grupo de risco”, como muitos colegas de ofício, antes da pandemia. E por quê? Vou ver se dá pra concatenar as ideias que a pandemia também bagunçou um pouco. Afinal, manter a sanidade mental durante a pandemia também foi algo desafiador: Acordo comigo, durmo comigo, como comigo, trabalho comigo, principalmente, nunca andei tanto em minha companhia como nesse período de pandemia! Lembrei! – Diga-me com quem andas e te direi quem és. Sei não, acho que isso ficou um pouco mais complexo agora com a pandemia. Tá vendo? – É tudo por causa da pandemia! Corre o pensamento ligeiro, alado, mercuriano, como fiel geminiana, pelas linhas dessa crônica.
Desculpem. Vou retomar alguns pontos. Curiosamente, queremos estar com outros, ainda que saibamos das dissimulações nas interações sociais, das “falseanes” que encontramos pela vida, do vizinho estridente, da criança inquieta, arteira e incansável, da síndica chata, da vendedora insistente. Ainda assim queremos conviver. Sentimos falta de conviver, de abraçar, beijar, piscar o olho, de conversar demoradamente sobre o filme a que assistimos, sobre a música nova do cantor de que mais gostamos e por aí. Vida que segue. Mas não seguiu por causa de quem? De quem? De quem? (Dá-lhe Galvão!) Por causa da pandemia. Charada fácil de resolver, ao menos aparentemente.
Lamento leitora, leitor, produtora de cultura e produtora de quimeras. Acho melhor começar o quanto antes a prestar atenção ao trabalho de muitos pesquisadores na área das Ciências humanas e Sociais. Em realidade, ou entre realidades, as existentes e as possíveis, e mesmo aquelas desejáveis e impossíveis, pois há muita “coisa”, ou muita situação que já existia antes da pandemia e que a doença devastadora de economias e vidas deixou finalmente as pessoas tomarem contato com valores, princípios e contextos adversos de há muito tempo.
Não sei, mas estou desconfiando que daqui a algum tempo quem anda a dizer que tudo o que estamos vivendo de ruim no país nos últimos anos é culpa do…deixa pra lá. Falo não. Pensem o leitor e a leitora em completar a frase. Que tal? Então, penso que vamos relativizar e botar algumas ideias nos devidos lugares e parar de dizer que é culpa do partido tal, ou culpa da pandemia. Sei que são “coisas” bem diferentes: pandemia e política. O leitor e a leitora têm toda razão se já estiverem pensando isso e querendo ir embora num click. Vá não! Fica aí que o “intervalo passa rapidinho e volto já” pro tema principal da crônica!
O que foi? Não ouvi! Fala mais alto! Quer saber por que sou de “risco” antes da pandemia? Provoquei? Certo. Obrigada. Desculpem. Fiquei assim com a pandemia, ouvindo vozes, mais fragmentada, em quase 350, como o poeta amado Mario de Andrade sugeriu em Sou trezentos... Apresento-lhes um trecho do poema: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta/,Mas um dia afinal eu toparei comigo…/Tenhamos paciência, andorinhas curtas,/Só o esquecimento é que condensa,/E então minha alma servirá de abrigo.”
(Tenho certeza de que o “intervalo” foi melhor do que se esperava. Ele não comandou você comprar nada nem fez aquele pisca-pisca de luzes de Led, ou tocou um jingle chiclete que depois você vai ter um trabalhão pra esquecer.)
Então, é também isso que uma produtora de quimeras faz. Produz, direta ou indiretamente, encantamentos, fantasias, alegrias com obras autorais e organiza eventos em que poemas como esse do Mario são lembrados e outros lançados, por exemplo. E se você tem como referência para o termo “quimera” uma aproximação com “monstro”, daquele que solta fogo pelas as narinas, saiba que está valendo. Afinal, quantas obras artísticas não desestabilizam nossas certezas a ponto de se tornarem “monstros” em nosso pensamento? Lembra-se de Guernica de Picasso? Do Grito (1983)de Edvard Munch, pintor de uma série de quatro quadros do norueguês ante uma visão que teve ao caminhar sob o por do sol. Ele expressou o desespero, a ansiedade e a angústia e o grito.
A pandemia tirou de nossos sentidos essa convivência com algumas obras de arte, sejam da pintura, das artes plásticas, da poesia num sarau ou naquela poltrona especial da livraria que você frequentava. Tirou o sono ao fazer-nos pensar que muitas crianças ficaram sem a possibilidade de ouvir histórias dramatizadas e que as faziam sonhar. Tirou os programas de algumas comunidades em que o ponto de luz apresentava o teatro de domingo à tarde, entre tantos outros eventos.
A pandemia obrigou a todos o uso de máscaras, ao mesmo tempo em que fez cair as máscaras daqueles que não vêm cuidando de produzir políticas públicas que alcancem crianças, cidadãos e cidadãs de classes menos favorecidas em nosso país na promoção de livros acessíveis, museus bem equipados, exposições articuladas a atividades criativas e formativas pra todos/as/es/ independente de raça, credo ou idade, por exemplo, ou espaços culturais acessíveis para a inclusão ser uma constante para todas as pessoinhas. Caiu a máscara daqueles que antes geravam um clima de terror em torno da cultura, pregando o perigo que representam os artistas e, em especial, as escritoras e os escritores que mexem com a cabeça das pessoas, fazendo dos artistas um “grupo de risco” às avessas.
Mas quis a sensibilidade humana que do mesmo jeito que o campo da cultura fosse o primeiro a sofre os impactos da pandemia, ou de governos que odeiam a cultura tal qual ela está na contemporaneidade,múltipla,incerta,indeterminada,fragmentada,cibernética,enfim, quis que nos reinventássemos. E foi exatamente a área cultural que melhor defendeu uma nova forma de convivência, ainda que à distância, e começou a produzir quimeras de maneira diferente: live, live, live. (É muita live, né amiga?) Estou fazendo um meme de mim mesma! Este campo foi um dos primeiros a recuperar a relevância das culturas e dos expoentes (anônimos ou não) do cenário cultural dos povos. É só ver as tantas lives que são realizadas diariamente na cibercultura do momento.
A “promoter” pode criar redes de contatos (classistas ou não!), desenvolver conceitos para um evento e criar a partir disso um planejamento com orçamentos, e, se necessário, arrecadar fundos, patrocínios para que o evento se realize. Ela deve ter em mente que certa abnegação é um aspecto construtor de suas atividades, pois não há horário e local para que as medidas administrativas e organizativas sejam disparadas.
No entanto, o mais importante e significativo seja, talvez, ter uma reflexão própria e consistente sobre que tipo de cidadão quer ver se desenvolver em seu país, através da cultura que promove.
As “produtoras de quimeras” também formam opiniões, influenciam a educação e agem sobre as sensibilidades, ratificam discursos hegemônicos ou não sobre as desigualdades sociais, ao se apresentarem e atuarem no cotidiano das culturas como produtoras culturais, seja qual for a linguagem estética com que estejam interagindo. Somos produtoras quimeras em obras e de obras em quimeras. E isso dá uma vontade de deixar individualismo descansando e “sair” para conviver em comunidades, grupos e coletivos ainda que virtualmente. É muito bom tocar um instrumento? É melhor ainda ver pessoas nas varandas ouvindo alguém tocar um instrumento…
(Você estranhou a expressão estar no feminino? Então, comece a pensar por que eu estaria a difundir a potência dessa profissão focando na iniciativa de mulheres?)
Angeli Rose é escritora, cultivadora (delegada do RJ), coordenadora geral do COLETIVO MULHERES ARTISTAS (coletivomulheresartistas@gmail.com ); escreve às 4as.feiras no JCB e é pós-doutoranda em Letras na centenária UFRJ, entre outras atividades que desenvolve e títulos honoríficos que possui. Carioca e geminiana foi capa da Revista Literária Lusófona (34ª.edição,digital).É membro de diversas academia de Letras, Artes e Ciências e autora de Biografia não autorizada de uma mulher pancada. No momento, está empenhada no projeto novo de lives MULHERES E POLÍTICA: DESAFIOS E PROPOSTAS, do coletivo que coordena no canal do YouTube: angeli rose nascimento. Projeto apoiado pela Associação CULTIVE, Art-littérature e Solidarité (https://www.cultive-org.com/ ) e a Revista Literária lusófona (https://www.facebook.com/revistadivulgaescritor/)
http://lattes.cnpq.br/4872899612204008
@nascimentocapitu
Que crônica riquíssima. A pandemia mudou muitas coisas em nossas vidas, dentre elas, os eventos culturais que tanto transformam pessoas e a sociedade. Os produtores de quimeras são seres iluminados, que acreditando no “contágio” artístico, preenche espaços vazios nos corações das pessoas. Parabéns pelo seu texto.
Obrigada,querida,pela leitura atenta. 🌷🙋🏽♀️
A pensar que pode se tirar algo de bom em situações ruins (pandemia), parece hilário, mas não é.
A opção de repensar em posicionamentos diante da sociedade e em prol de benefício é marcante. Deixo os parabéns a você, Angeli Rose, que tem se posicionado em benefício da cultura. Compromissada em formar opiniões e de provocar opiniões ramificando reflexões. Impossível ler uma crônica sua e não ser protagonista dela.
Obrigada,querida Valéria Lima,pelas generosas palavras e pela leitura atenta. Vamos juntas!🌷🙋🏽♀️
Exelentes textos!
Obrigada! 🌷🙋🏽♀️