“Sempre que escuto alguém cantando Ave Maria, recordo da paisagem que vemos na BR 262“
Por Juliano Azevedo – Academia Mineira de Belas Artes – Belo Horizonte em 09/10/2020 às 04hs20mins
Certas pessoas, paisagens, cheiros e sabores
Estava em busca de inspiração para escrever esta crônica. O tempo, a falta dele, as memórias, a ausência de palavras, o destino que me levava a outros caminhos, que são distantes do papel. Não conseguia colocar sequer uma letra na página em branco. Comecei várias prosas. E nada vinha nas ideias. Se fosse à máquina de escrever, eu teria gastado uma resma. Ainda bem que existe o computador para ajudar na economia de folhas. O insight veio de duas maneiras: primeiro, a fumaça de um café saindo fresquinho da xícara que desfilava pela cozinha; e depois, lendo o livro Dois Irmãos, do manauara Milton Hatoum. Uma frase provocou o estalo para dar início a este texto.
Às seis horas da manhã, diariamente, Tia Lena, levanta da cama para um ritual. Com mãos jeitosas, silenciosas, que se deslizam calmamente pelas contas do terço ao longo do dia, ela prepara duas garrafas de café – uma com doce e a outra sem. Como as orações, a bebida matinal na casa dela é sagrada. A modernidade trouxe os filtros de papel e minha tia também evoluiu além do coador de pano. Porém, o cheiro e o sabor continuam marcantes desde a época em que eu não alcançava o acendedor do fogão. À tona, veio a lembrança do tradicional Café Bom Despacho, que talvez é o melhor gosto da infância. A fábrica, pertinho da minha morada no bairro Jardim América, exalava o perfume da torra dos grãos desde o alvorecer. A combinação do amor de Tia Lena na cozinha e da história dessa empresa me fez redescobrir sabores e cheiros do passado.
Mingau de fubá com queijo derretido, bolinho de chuva, biscoito frito de polvilho, pipoca, bolo de cenoura com calda de chocolate, broinha, pão de queijo, rosquinha de nata. Tantas quitandas e tantos pratos feitos com carinho na mesa de nossas famílias, nos dias frios do inverno, na saída de madrugada para a escola, no intervalo do trabalho. Para receber as visitas, para alimentar a geração de filhos, de netos, de sobrinhos. Receitas nem sempre registradas em livros de culinária, mas presentes nos melhores momentos da vida.
Sempre que escuto alguém cantando Ave Maria, recordo da paisagem que vemos na BR 262. Dali, podemos admirar a Cidade Sorriso. Sua extensão, suas mudanças territoriais, os prédios cercando a Igreja Matriz, que antes era a mais linda vista desse mirante. Impossível não parar às 18 badaladas do sino e rezar com a Rádio Difusora, ouvindo a Hora do Ângelus. Mesmo a frequência dela não alcançando onde estou, é nesse instante que bate a saudade do pretérito. A nostalgia. E a certeza de que nada acaba.
O autor de Manaus disse na obra que citei: “seu entusiasmo para redescobrir certas pessoas, paisagens, cheiros e sabores era logo sufocado pela lembrança de uma ruptura”. E essa frase motivou estas linhas. Ao me mudar, minhas memórias ficaram para trás. Rompi com algumas coisas, pois era uma saída para outra fase, de busca para um futuro profissional. Esquecimento provocado por diversas circunstâncias. No entanto, ainda bem que não dá para fugir das raízes. Muitas vezes, queremos encerrar o que se passou, porém, é do passado, que vem nossos valores. Escrever hoje faz isso comigo: as lembranças me dão ânimo para conhecer algo novo, para reconstruir o que me formou. Por isso, gosto de falar de gente, da minha gente. Gente que me inspira na hora do cafezinho. Um gole que entusiasma e provoca o renascimento de sujeitos, cenários, aromas e paladares de Bom Despacho.
Juliano Azevedo
Terapeuta Transpessoal, Jornalista e Professor.
Mestre em Estudos Culturais Contemporâneos www.blogdojuliano.com.br
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