Mergulhado na súbita escuridão, recorreu a lanterna do celular vasculhando a parte inferior da casa
Por Paulo Siuves/Toni Ramos Gonçalves – Academia Mineira de Belas Artes/ Jornal Clarín Brasil JCB – Belo Horizonte em 25/10/2020 às 08hs05mins
O Treinador – Parte I
Por Paulo Siuves e Toni Ramos Gonçalves
Chovia forte naquele entardecer, quando o carro estacionou em frente à casa de dois andares localizado numa pequena comunidade rural, distante apenas dois quilômetros da cidade.
Dentro do carro o motorista fez uma chamada pelo celular e através dos vidros embaçados procurou enxergar alguma movimentação na casa, como o acender de alguma lâmpada.
– Merda, Galdino! Atenda o celular. – Irritou-se.
Como ninguém atendeu, bateu com uma das mãos no volante do carro. O jeito era enfrentar aquele aguaceiro caindo do céu. Desceu do carro e para sua sorte o pequeno portão de acesso estava aberto e correu até a varanda.
Tocou a campainha. Enquanto aguardava, olhou ao seu redor e percebeu o descaso com a propriedade. Um jardim abandonado, o matagal se alastrando pela entrada e arredores. Andou pela varanda e olhando para os fundos da casa viu que o carro do seu amigo estava numa garagem improvisada. Retornou à porta e bateu forte com a mão em punho.
– Galdino, sou eu, o Hugo. Eu sei que você está aí!
Há pouco mais de quarenta dias encontraram-se na capela do velório. O treinador Galdino chorava copiosamente a morte de sua esposa. Não existia palavras que o pudessem consolá-lo. Ele aproveitou o recesso do campeonato e se recolheu na casa de campo que herdou de seus pais. Desde então, o diretor Hugo, amigo de longa data, era o único que conseguia falar com ele. Porém, havia três dias que suas ligações e mensagens não eram atendidas e respondidas. O campeonato estava próximo de recomeçar e existia uma pressão da diretoria pela volta do treinador, uma vez que os jogadores do time de futebol já retornaram às atividades físicas e as chances de acesso à primeira divisão da elite de futebol eram excelentes, devido ao bom trabalho desenvolvido pelo técnico Galdino.
O diretor Hugo esperou mais algum tempo para que alguém o atendesse e não resistindo à ansiedade levou a mão à maçaneta e constatou que a porta estava aberta. Deixou que o resto de luz daquele dia cinzento invadisse a sala escura. Um cheiro desagradável o fez levar a mão ao nariz. Tentou acender a luz, mas possivelmente, devido à tempestade tudo indicava que não havia energia elétrica na casa. Chamou novamente pelo treinador, mas sem resposta. Caminhou lentamente por uma sala, com objetos jogados pelo chão, latas de cerveja amassadas sobre uma mesa e alguns móveis revirados. Assustou-se quando a porta bateu às costas devido à força do vento. Lá fora, a chuva se tornara um dilúvio seguido de relâmpagos e trovões. Mergulhado na súbita escuridão, recorreu a lanterna do celular vasculhando a parte inferior da casa. Não encontrando ninguém subiu pela escada de acesso ao segundo andar. Cada passo era acompanhado por um rangido do degrau.
Passou por um longo corredor conferindo as portas. Na última, deparou-se com o treinador apagado sobre a cama, ao lado, no chão, o vômito ressecado. Todos sabiam o amor que ele sentia pela esposa. O trágico acidente abalou profundamente seu emocional. Não tinham filhos, o que na maioria das vezes serve de consolo e estímulo para se viver o luto, e o desconsolo já era visível. As duas derrotas contra adversários considerados fracos ao fim do primeiro turno ligaram o sinal de alerta do principal patrocinador do clube. Havia muito dinheiro envolvido, principalmente para ele, o diretor.
Sentou-se ao lado da cama pensando em algo que reerguesse o treinador. Após um relâmpago viu sobre uma cômoda a foto do casal diante da torre Eiffel. Aproximou-se e iluminando-a com o celular observou. Era uma mulher bela, sem dúvidas, impossível de não se encantar, qualquer um se apaixonaria e mataria por ela. Olhou para o amigo estendido sobre a cama e sabia que a única coisa que o traria de volta seria denegrir a imagem da esposa. E para isso, sabia que precisaria mentir. E mentir era um dos seus talentos.
Este conto foi produzido em três partes para participar do projeto Em um Mês, Um Conto. Publicado nas sextas feiras do mês de outubro de 2020 em comemoração ao Halloween.
Paulo Siuves é escritor, bacharelando em Estudos Literários pela Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, presidente da Academia
Mineira de Belas Artes, Embaixador Cultural da Academia de Letras do
Brasil, músico e agente de segurança pública em Belo Horizonte, e escreve semanalmente para o Jornal Clarín Brasil