Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB – Belo Horizonte em 31/10/2020 às 11hs41mins
COM QUE ROUPA EU VOU?
Fique tranquila, tranquilo, leitor, leitora, não vou submetê-lo/a ao constrangimento de ter de ouvir a minha voz desafinada e rouca num podcast ensaiando o samba de Noel Rosa, aquele sambista da amada Vila Isabel ,onde passei minha infância e adolescência(Nem sempre fui da “princesinha do mar”!). Há inúmeras versões com os mais variados arranjos e muitos de bom gosto (https://youtu.be/k6BiMxZZQmA ,essa é com o Gilberto Gil, nosso ex-ministro da Cultura e múltiplo talento nos mais variados gêneros musicais da MPB). Mas se você for daquelas, daqueles que gosta de conhecer mais sobre o artista e suas produções dê uma passada numa outra versão, a 1ª. , original, da RCA, com o próprio Noel Rosa (https://youtu.be/rETSGoLBjjk ). Dê-se algumas horas de deleite contemplando parte da nossa MPB.
Em realidade, isso foi só a introdução do assunto de hoje. Machado de Assis já apontava em seu tempo que palavra puxa palavra e nesse jogo, a escrita literária e ensaística pode ser criada. De fato, há colegas de ofício que recorrem a esse jogo de linguagem e têm nos contado em suas entrevistas sobre os processos de criação literária. E ao lado disso, podemos ter o jogo de pensamento e memória musical, considerando características da cultura brasileira que conta com uma tradição de letristas que vão além da letra de canções, pois são poetas e poetisas em suas manifestações estéticas. Talvez por aí se justifique a minha dinâmica mental que a cada bloco temático lembra-se de uma canção. Faço piada comigo mesma, às vezes, até.
Assim surgiu a ideia de iniciar esta crônica da semana, com a canção de Noel Rosa, por todas as evidências presumíveis que o leitor, ou a leitora quiserem imaginar: a familiaridade com o segundo nome; a memória do bairro em que nasceu o sambista (Na rua Teodoro da Silva); influência dos filmes hollywoodianos românticos das sessões da tarde em que o gênero musical era a certeza de pontos no Ibope; ou a razão do tema que finalmente revelo antes as dúvidas do trabalhador e da trabalhadora preparando-se para uma entrevista de emprego.
Sim, é a dor de cabeça do momento imediatamente anterior à entrevista de emprego, ainda que hoje sejam realizadas predominantemente on line, devido à pandemia, principalmente. Desculpem, sei que o leitor (e),ou a leitora dirão que isso é uma preocupação de classe média, burguesa, ou feminina, porque é uma questão tipicamente de classe, ou de gênero, já que o trabalhador e a trabalhadora em condição menos favorecida (ou nada favorecida!) sequer poderão ter tal preocupação. Sim e não. Penso que pode morar nessa conclusão precipitada certa invisibilidade em relação à preocupação com a dignidade. Dignidade de cidadãos, dignidade de trabalhador e trabalhadora que mesmo diante do desemprego que assola o país há alguns anos e mais radicalmente neste ano em que algumas conquistas foram perdidas e os postos de trabalho foram escasseados pelo impacto da pandemia global. Uma amiga me confidenciou que perdeu dois contratos de trabalho e eram contratos de subemprego, dada a qualificação que possui em sua área. Outro colega comentou que as viagens para palestrar em escolas, que lhe valiam alguns autógrafos depois das conversas bem humoradas com estudantes ávidos por conhecerem o dono da história, foram canceladas e outras adiadas, sabe-se lá para quando, considerando que ele é do chamado “grupo de risco” ao pensar na idade. A amiga mais próxima contou-me que já nem sabe que curso fazer, pois fizera quase todos na esperança de atualizar-se e acompanhar o “mercado” e manter-se com um currículo desejável pelos contratadores. Enfim, a dimensão da pergunta do legendário samba sempre atual de Noel, ainda que você nem passe perto dessa preocupação com emprego e esteja mesmo é pensando no encontro potencialmente amoroso adiado, a questão com que roupa ir é reveladora das desigualdades sociais, inclusive, esteticamente. Já pensou nisso? Ah! Para aqueles ou aquelas que acham, com certa razão, que estou “cariocando” demais, não deixem de ler a descrição do pesquisador Felipe Valentim no vídeo com Noel Rosa. Ali terão a oportunidade de saber a história do considerado “hino” nacional em que o samba “Com que roupa” se transformou. Aliás, essa história de cantar hino nacional… deixa pra lá.
Vou por outro desvio para explorar a pergunta que me veio através da canção ao saber os últimos números sobre o desemprego e as “dicas” de como e o quê revelar na hora da entrevista de emprego. Se estiver precisando de emprego, não hesite, siga as “dicas” sem pestanejar. Mulheres: nada de saias curtas, justas, blusas coladas no corpo, cores fortes, tipo verde limão, mesmo que esteja na moda, hein! Homens: camisa social, mas abotoada, por favor, até acima do peito, se tiver, ou terno de cor “neutra” e se for colocar gravata, evite as estampadas. Isso, se estivermos falando da área administrativa, de ambientes de escritórios e assemelhados; o princípio da discrição serve a todos os gêneros, saindo do binarismo. Se você for fazer entrevista numa fábrica ou loja de pranchas de surfe, por exemplo, tudo pode mudar de figura e razão. No último caso, ante a qualquer falta de recurso, utilize a melhor das dicas, seja mimético, isto é, observe aquelas pessoas que você admira, celebridades ou famosidades, pode ser a vizinha também, e transporte-as para o seu contexto e veja o que poderia ser mais adequado. Por que comento sobre “transportar para o seu mundo”? Porque o ambiente televisivo ou de capas de revistas nas sobreviventes bancas de jornal precisa ser chamativo, causar impacto. Então assistir a uma jornalista ou apresentadora de verde limão é plausível, já que as cores mantém a atenção do espectador voltada para a telinha. Você pode até se sentir a “Mulher Maravilha”, mas, menos, por favor, na hora de escolher o modelito.
E, por favor, mais um te peço. Não faça como a minha amiga que levou certa vez o filho de dez anos, já leitor exímio, criança doce e quieta que tive a alegria de conhecer, à entrevista de emprego numa escola e foi sumariamente descartada, apesar da forte indicação para a vaga por parte de um colega renomado na área. Lembro-me de comentar recentemente se tratar de uma escola tradicional da classe média carioca, ter a ver com aquela escola em que a moça negra angolana, acho, fora discriminada por colegas por sua condição de mulher negra. O fato fora amplamente comentado na mídia televisiva e impressa. Vocês vão se lembrar por a cultura contraditória carioca ganhou todos os jornais para além dos locais.
Noel era músico, seu ofício era o samba e naquele carnaval de 1930 o “hino nacional” no samba ganhava ares de realidade da desigualdade social no país. Nessa pergunta, já repousa a injustiça social, a severa condição de precariedade por que passam o trabalhador e a trabalhadora brasileiros, ontem, hoje e espero que não no futuro. Vamos! Escute com atenção o samba na versão que melhor lhe aprouver, caro leitor(e),cara leitora. Medite sobre o que é não saber como se conduzir para conquistar uma vaga desejada, seja no coração de alguém, seja num posto de trabalho. A preocupação tem a ver com o principio da sociabilidade e da convivência. Queremos conviver em sociedade. Queremos ser aceitos e aceitas. Nós também, cronistas, ficamos a pensar sobre até que ponto a “discrição” é necessária para conquistar os likes necessários a fim de nos mantermos por aqui em sua companhia. Selva! (o bordão é do exército e eu o ouvia sempre que um vizinho gritava o termo ao chegar à sua casa todas as tardes, depois da labuta.).
Antes de ser acusada de estar sendo frívola ou light demais com essa história de falar de roupa, lembre-se de que hoje se fala muito em coerência (eu diria que às avessas, mas tá valendo). “Não basta ser, é preciso parecer”. É o bordão de alguns. É preciso ser convincente. A sedução está no ar. É preciso ser coerente e deixar transparecer, ou transbordar, o que de fato quer conquistar. São muitas ideias para refletir, acredite. E quando tiver as reflexões sobre algumas das provocações aqui colocadas, você talvez perceba que a roupa nem será exatamente a sua preocupação maior.
E a população de rua que precisa receber assistência direcionada para ser retirada daquela condição de miserabilidade e risco? Pensará nessa questão? “Com que roupa?”
Pois eu vou lhe contar o que uma amiga me contou: ao separar algumas bijuterias, objetos de maquiagem, um xale, e outras peças das quais não precisava mais. Estavam razoáveis, mas não serviam para vender em brechó virtual. Então, foi até uma esquina de sua casa e as doou a um pequeno grupo de pedintes. Mas o que lhe tocou a ponto de vir compartilhar o episódio foi a reação imediata das duas mulheres que integravam o “grupo de risco”, estes o são muito antes de qualquer pandemia. As mulheres jovens, magras, descabeladas. Não! Seus cabelos eram black power. Passaram a comentar em tom médio e com alegria: “- olha! Vamos poder ficar bonitas! Eu quero esse batom pra mim! Mas eu te empresto!”. Ao que a outra respondeu: “ – Eu quero esse anel. Adoro anel grande… E esse brinco? Com pedra azul! Eu te empresto também…”
Comovente como a dignidade humana é resiliente, se encorpada pela esperança. Eu gostaria de acreditar que a humanidade pode ter algo de similar com o processo de produção dos bons vinhos: condições climáticas apropriadas, cultivo paciente e tempo adequado para se desenvolver em bom vinho de qualidade. Gostaria que a esperança fosse um combustível capaz de nos fazer melhores em nossas potencialidades de convivência e respeito entre nós. Aquele respeito e aquela solidariedade comoventes que foram observadas pela minha amiga e que me ensinaram tanto sobre a possibilidade de ser simples com toda sofisticação que a dignidade exige para se manifestar nos seres, foram responsáveis por imediatamente lembrar do samba de Noel e da condição dos trabalhadores e das trabalhadoras hoje desempregados e desempregadas. O que posso ainda dizer?
Com que palavras vou a eles? Com que tema venho a você hoje? Para além do samba de Noel Rosa, posso lembrar-me de Construção do Chico Buarque. Da tragicidade que contorna a realidade da classe trabalhadora. Da fragilidade que é imposta ante os contratos precários a que são submetidos e submetidas trabalhadoras. Nunca foi fácil ser pobre. Em tempo algum. Se você tiver qualquer nostalgia em relação a isso, corra e vá ler um pouco sobre o movimento de operários na Itália dos anos 50 e 60. Se quiser, leia “O Cortiço” de Aluízio Azevedo. Volte a “A hora da Estrela” da centenária Clarice Lispector. Leia Bertolt Brecht e sua “Ópera dos três vinténs”. No gênero ensaístico, se especialista, leia O Cosmopolitismo do pobre do Mestre Silviano Santiago (aliás, encontrei esta semana com ele no supermercado, bem disposto, físico em forma e sempre muito atencioso. Nunca fui aluna dele, acompanhei várias palestras, li quase todos os seus livros. É um mestre da prosa.). E você terá mais elementos para pensar sobre o que seria se perguntar “Com que roupa eu vou?” E se você tiver vários vestidos, ou várias camisas para escolher e a escolha for difícil, pense se há alguma peça que pode vir a dar alegria nesse natal a alguém em situação de risco, vivendo nas ruas de sua cidade, ainda que esta pessoa não vá de imediato a uma entrevista de emprego. Seja discreto, discreta, ao dar o que puder. Nem precisa contar-me sua história. Mas lembre-se de dar um like, se gostou, ao final dessa crônica de fim anunciado. E se for leitor habitué(frequentador) do jornal, faça o mesmo com os meus colegas: Passe nas paginas deles em seus dias e dê seu like. Ouse até comentar a alegria de ser lembrado em nossas linhas. Estamos juntos no jardim da esperança.
A poesia de hoje ficará a cargo do leitor ou da leitora. Pode enviá-la a mim, se consegui em algum momento inspirá-lo, ou motivá-la a tanto. Boa semana!
Ah! E com que roupa eu vou à live que você me convidou?
Angeli Rose é colunista semanal no Jornal Clarín Brasil -JCB (digital),membro-correspondente da AMBA e de outras associações e academias de Letras, Artes e Ciências, idealizadora e coordenadora do COLETIVO MULHERES ARTISTAS, PhD em Educação, pesquisadora realizando o segundo estágio pós-doutoral na centenária UFRJ, autora de, entre outros, Biografia Não Autorizada de Uma Mulher Pancada, coautora em diversas antologia nacionais e internacionais, tem sido agraciada com vários prêmios e títulos honoríficos, como Embaixadora da Paz (OMDDH). É mãe de Thiago Krause, historiador (UNIRIO), carioca e geminiana. Adora uma boa conversa e andar na praia. Aprende muito com as amigas e as inimigas, sempre. http://lattes.cnpq.br/4872899612204008
Excelente, pois infelizmente é muito pertinente: as discriminações continuam a acontecer e as desigualdades só foram potencializadas pela pandemia.
Obrigada pela leitura atenta.
Angeli Rose ,
A qualidade na simplicidade foi o que mais amei na sua crônica.
Obrigada pelo deleite de ler você!
Abraços
Maurienne
Grata pelas palavras carinhosas.
A crônica é muito oportuna e abrange o mais diversos assuntos, começou pela roupa no samba de Noel, adentrando pelos mais diversos sentidos da roupa na vida social, até chegar na doação da roupa para fazer a alegria do Natal de alguém que precise! Fico encantada com a criatividade de Angeli Rose!
Obrigada pelas observações. É muito bom ter uma leitora sensível como você.