“Vai à merda. – Respondeu o treinador abrindo a geladeira à procura de uma cerveja”
Por Paulo Siuves e Toni Ramos Gonçalves – AMBA/JCB Belo Horizonte em 02/11/2020 às 14hs07mins
O TREINADOR – PARTE 2
Por Paulo Siuves e Toni Ramos Gonçalves
Acordar era o pior pesadelo que o treinador Galdino vivia desde o acidente que vitimou sua esposa. Sentou-se na beira da cama, iluminado pela luz opaca de mais um dia nublado que atravessava a fresta na cortina. Uma dor de cabeça latejante o incomodava. Pegou a latinha de cerveja na mesinha em busca de um gole, mas, ao balança-la, notou que estava vazia. Dirigiu-se praticamente se arrastando entre a luz e a sombra para o banheiro da suíte. Diante do espelho, não se reconhecia: a barba por fazer, os cabelos grisalhos desgrenhados, os olhos vermelhos e com olheiras. Abriu a torneira do lavabo e ficou ali perdido em seus pensamentos. Lembrava-se das fotos recebidas no seu celular horas depois da tragédia, disseminados pelos curiosos que passaram pelo local. O impacto do caminhão desgovernado foi tão forte que partiu o corpo dela em dois. Os órgãos esparramados sobre o carro e pelo asfalto, o tronco à beira da estrada e as pernas destroçadas naquele rastro de sangue. O velório, com o caixão fechado, o impediu de vê-la uma última vez. Chorou por alguns segundos sua dor, até que um aroma de café o trouxe de volta a realidade.
– Raquel??? – Sussurrou para si mesmo, saindo do quarto em direção à cozinha.
Para sua decepção encontrou o diretor Hugo encostado na pia com uma xícara de café na mão.
– Bom dia, bela adormecida! – Saudou-o com um sorriso matreiro.
– Vai à merda. – Respondeu o treinador abrindo a geladeira à procura de uma cerveja.
– Você bebeu tudo. Senta aqui. – Puxou uma cadeira – Precisamos ter uma conversa séria.
Galdino coçou a cabeça, percebeu a recente limpeza da casa e acabou cedendo.
– Organizei o seu chiqueiro, me lembrou os tempos de república, hein? Você sempre foi o mais desorganizado.
– Fala logo o que você quer e me deixa em paz…
– Meu amigo, há quanto tempo nos conhecemos? Quantas vezes passamos perrengues juntos? Você sabe que eu quero o melhor pra você, afinal, você é meu irmão, somos praticamente da mesma família, eu me preocupo com você!
Galdino e Hugo eram amigos de longa data. Estudaram na mesma universidade apesar de o treinador ter cursado Educação Física e o diretor se graduado Administração. Moravam na mesma república e, mesmo depois de formados, mantiveram contato. Há pouco mais de dois anos, Hugo o convidou para treinar um time da terceira divisão, ao saber que o amigo estava desempregado. A parceria foi um sucesso. O time conseguiu subir para segunda divisão do campeonato nacional. Isso atraiu patrocinadores das cidades vizinhas que investiram para que a equipe conseguisse acesso à elite do futebol. Ia tudo bem; até o trágico acidente.
– Você precisa reagir. – Continuou o diretor – O campeonato está prestes a voltar. Os jogadores já estão nas atividades físicas e existe uma pressão imensa sobre mim. Preciso de você. Não pode me deixar na mão.
– A Raquel foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. – Lamentou-se com os olhos lacrimejantes.
– Como eu disse, somos irmãos, crescemos juntos, tudo o que te afeta, me afeta também. Sabe de uma coisa? Mais cedo ou mais tarde você vai ficar sabendo de toda a verdade e vai cobrar de mim a razão de eu não ter te falado, então… antes tarde do que nunca.
Galdino estranhou o tom de seriedade do amigo e fitou-lhe diretamente nos olhos.
– O que você quer dizer com isso? Desembucha logo.
– Bem, a Raquel era muito mais jovem que você. Acredito que ela estava pulando a cerca. Você sabe, essas mulheres de hoje em dia…
– Acho que você perdeu o juízo, isso sim! Invadir minha casa e levantar falso contra minha mulher morta? Ela vivia para nós. Isso é impossível. – Disse batendo os punhos fechados sobre a mesa. – De onde você tirou essa loucura? Lave sua boca para falar dela, seu cretino.
– Veja com os olhos da razão. O que ela tinha que fazer naquele local do acidente? Além do mais, quantas vezes ela saía sem lhe dar alguma explicação? Aposto que ela sempre lhe negava sexo alegando dor de cabeça.
– Ah, seu filho da puta!!! – Praguejou o treinador levantando-se e pegando o amigo pelo colarinho. – Vai embora daqui, antes que eu arrebente a sua cara.
O diretor se desvencilhou, ajeitou o colarinho e, dando-lhe as costas, se dirigiu para saída da casa.
– Tudo bem. Espero você até amanhã. Depois disso, não me comprometo mais. – disse seguido de um sorriso irônico, sem que ele percebesse.
***
Galdino andou de um lado para o outro no interior da casa, depois que o amigo saiu. Buscou explicações para as palavras acusatórias, tentando afastar a imagem da traição da cabeça. Irascível, imaginava quebrando, com o martelo de carpinteiro, o rosto do amigo, numa mistura de miolos, ossos, carnes e cabelos, o sangue nas mãos e paredes, enquanto resgatava a honra de sua amada falecida. Na sala, abraçou uma almofada imaginando Raquel. No corredor, a caminho do quarto esmurrou a parede à sua esquerda. O pior que Hugo levantara suspeitas que, até então, Galdino não percebera. “O que ela estaria fazendo naquele bairro? As saídas constantes, a falta de sexo, a gravidez sempre adiada. Se fosse verdade, quem seria o amante?” Essas dúvidas o intrigavam. O local que ela mais frequentava era a parte social do clube de futebol e, para que o amigo suspeitasse, o amante só poderia ser alguém da equipe. portanto, era preciso voltar ao trabalho.
***
No dia seguinte, Galdino saiu de casa cedo para se apresentar no centro de treinamentos. Teve uma recepção calorosa entre os funcionários e os jogadores, que aprovavam com alegria seu retorno. Hugo, quando o viu, lhe deu um forte abraço. O treinador não deixou por menos e foi logo perguntando:
– Com quem ela me traía?
– Deixa disso, homem. Temos muito trabalho pela frente. – Desconversou dando-lhe novamente as costas.
Antes das atividades físicas, houve uma conversa motivacional com os atletas no auditório e a apresentação do cronograma para os próximos jogos. Galdino ouvia imerso em pensamentos enquanto observava cada um dos atletas. Quando foi convidado para ser treinador do time, seu casamento completava cinco anos e, por causa do desemprego, o relacionamento definhava. O sucesso durante a competição e o dinheiro investido pelos patrocinadores deram uma injeção de ânimo em suas vidas. Ela sempre participava das confraternizações da equipe após as vitórias, era comum vê-la conversando com um ou outro jogador. “Mas quem seria o desgraçado?” Uma boa parte dos jogadores eram conhecidos da cidade e região, impossível imaginar tamanha traição. Para a disputa da competição vieram alguns jogadores encostados nos clubes da primeira divisão. O lateral esquerdo foi o primeiro a chegar, mas era carta fora do baralho por ser muito afrescalhado. O outro reforço foi o zagueiro afro-brasileiro de quase dois metros de altura, um verdadeiro guarda roupa. O camisa dez e craque do time era um mulherengo, tivera uma carreira de sucesso, havia jogado em times na Europa e jogar na segunda divisão era sua decadência no futebol, sempre cercado de mulheres, promovendo baladas no seu condomínio de luxo. E por último o goleiro, o salvador do time com defesas difíceis e milagrosas. Clubes europeus já demonstravam o interesse por ele e faziam sondagens. O próprio time da primeira divisão já queria o seu retorno.
Aquela dúvida só fazia aumentar sua angústia e ódio. O que ele queria era trancar todos ali dentro e tacar fogo. Assistiria a tudo à beira da piscina enquanto ouvia seus gritos de dor e desespero. Queimaria todos sem compaixão alguma.
***
A primeira partida no retorno do campeonato foi em casa e o time conseguiu vencer por um placar mínimo de 1 x 0, o que deixou a torcida animada. O jogo seguinte foi fora de casa contra o time favorito da competição e o empate diante o adversário motivou e deu esperanças para todos, jogadores e torcedores.
Galdino, durante os meses seguintes, reduziu seu consumo diário de bebida alcoólica e dedicou seu tempo a outras tarefas. Na casa herdada dos pais, ficava horas no porão onde eram guardados os produtos de limpeza, as ferramentas diversas, máquinas como furadeira, lixadeira, serra mármore, parafusadeira, motosserra, aparador de cerca viva, roçadeira, martelete, pá, enxada, todo material que precisava para fazer os reparos domésticos. À noite, quando não lia um livro, assistia a filmes ou séries de TV. Mas isso, não o impediu de procurar o possível amante de sua esposa. E sabia exatamente o que faria com ele quando o descobrisse.
Paulo Siuves é escritor, bacharelando em Estudos Literários pela Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, presidente da Academia
Mineira de Belas Artes, Embaixador Cultural da Academia de Letras do
Brasil, músico e agente de segurança pública em Belo Horizonte, e escreve semanalmente para o Jornal Clarín Brasil