Eles, os lobos, me devoram como aos bêbados mais incautos
Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB – Belo Horizonte em 08/11/2020 às 05hs11mins
Bárbara saiu de casa decidida a resolver o problema profissional pendente. Saiu “vestida para matar”, digo, saiu vestida para mandar. Mandar os criadores de problemas às favas. E contadas. Enérgica, determinada, prática, franca e leal, sobretudo leal, até com as inimigas (coisa rara nos dias de hoje!). Saiu de casa como um vento que passa levando consigo o que não serve mais. Oiá!
Parecendo a deusa dos ventos, a mulher simpática e dona de si e de suas histórias saiu pela porta de casa com a bolsa a tira colo cheia de apetrechos que qualquer mulher previdente acredita que pode precisar em algum momento do seu dia, seja para si, seja para ajudar a outra que encontre pelo caminho. Ela tem o poder de lembrar-nos que é inútil fincar ideias em tantas certezas, ainda que brilhantes, porque a vida nada mais é do que estocar ventos, quando nos damos por nós. E que perigosos são os tolos. Oiá!
Bárbara está acostumada a atravessar grandes distâncias para ir trabalhar, tal qual o rio Níger, na África Ocidental, que segue seu curso saindo da Guiné até chegar ao oceano, tendo cruzado o território da Nigéria. Ao falar, com palavras doces e acolhedoras, faz aragens mentais que chegam a parecer em seguida tempestades de ideias e de propostas de atividades que caibam como uma luva em cada ouvinte, pois conhecia a todos como ninguém. Aquela observação certeira que conseguia tirar o melhor de cada uma que por seu caminho cruzasse. Oiá!
Sim! Perceberam aquela mulher esguia, alta, de olhar direto e molejo discreto andando pelas ruas com pressa? É ela. A negra de rosto bem desenhado, lábios grossos, cabelo arredondado no puxado para cima, argolas grandes envolvendo um pingente em forma de rosa sobre as orelhas. Por onde passa “causa”. Por onde está é notada. E tem sempre um conselho que bafeja na ponta da língua para quem confidencia alguma amargura ou preocupação. Dá a nós a corrente de ar que resgata a memória de que a “vida normal e estável” não existe. É uma ilusão. Oiá!
Parece que estou ouvindo o canto da terra com pés batendo no corpo fino de Maria Bethânia, vindo pra perto de mim com a poesia de “Dona do raio e do vento”. Eparrê! Oyá! Quem é Maria Bethânia, a baiana? A “baionoca”? Sim, porque vive no Rio de Janeiro nas Estrada das Canoas faz décadas. A geminiana das palavras certeiras e pensamento mercuriano ensaia alguns passos no cenário da MPB faz tempo. Dou-lhe um tempo para ver e ouvir a grande intérprete de “Carcará” e de “Carta de Amor”: https://youtu.be/wR05zNR5GCc
Mas sabe ser brisa, para além das tempestades que causa quando vê uma injustiça, ou a ela imputam uma responsabilidade que não é sua. Tem clareza sobre as diferentes funções que exerce na vida nos variados grupos a que pertence. Pertencimento é, aliás, uma palavra difícil. Tem sua família e a preserva, porém, precisa de liberdade para em seu próprio tempo e espaço criar. É facilmente reconhecível como mulher de múltiplas facetas. Aquela que consegue pensar uma maneira mais prática de modo ágil para resolver algum “abacaxi”. Sua fruta preferida é manga, mas o melão também é bem vindo ao café da manhã, ou no lanche da tarde. Oiá!
Vibrante na cor que veste, essa mulher atraente e sedutora sabe também cativar seu amor e nos dá uma lição de sedução, sem ser vulgar. É um sopro de feminilidade encantada. Mas o que é ser vulgar senão estar fora de contexto? E se a ela fora dada a oportunidade de contar alguma história num grupo, logo, logo ver-se-á atraído pelas palavras cativantes e pelo carisma inigualável dela. Sua liderança é incontestável e sempre lhe traz adversárias. Aí, é possível também deparar-se com o ciúme dessa mulher diante do homem que ama ao vê-lo ser gentil com outra mulher. Controla tudo e todos a sua volta, soltando lufadas de olhares certeiros. Bárbara é a mulher que procura correr contra o tempo, embora deite a ele certa reverência. Sabe que o tempo não é um recurso renovável. Está a correr e a passar como nossas vidas sem que nos demos a perceber. Oiá!
(A Tempestade,1507, de Giorgiane)
Bárbara, aquela, saiu para ir ao encontro de amigos no cemitério. Acabara de falecer uma amiga querida: Nana. E estar perto de alguém que se foi recentemente é próprio dela. Antes de todos chegarem, ela chega e arruma tudo para a hora das despedidas. Faz do velório uma festa fúnebre com o toque de amizade que traz à lembrança de todos os convivas a presença daquela que se foi. Essa mulher-amiga e leal é necessária para que a faceta dela em cada uma de nós apareça em algumas situações de nossas vidas.
É possível que você conheça alguma Bárbara em sua constelação profissional ou familiar, porque temos esse potencial dentro de nós, a poção – mulher ventania , pragmática e criativa que vai resolvendo os problemas cotidianos sem perder a vitalidade que lhe é peculiar. Sabe ser uma adversária de peso, quando necessário. E não tem paciência com as dissimuladas, preferindo partir para uma conversa franca, para em seguida fazer o convite para u gostoso refresco que alivie as tensões. Ainda não encontrou a Bárbara dentro de você? Talvez seja o lado B. ainda. Não precisa contar para ninguém que ela chega as segundas e quartas, escancarando janelas, batendo portas, mas com um amor imenso pela vida, sem esquecer que existe o outro lado do espelho que precisa de alma e animação.
Assim, na procura de entender os ventos e a mulher-B. em mim, concluo essa crônica com um poema publicado originalmente na Antologia Ao Intento do Vento. Poesia nas montanhas de Minas. (vol.2),2019, “Os ventos são lobos”, :
Passam por mim os uivos dos ventos
A matilha vem em forma de arrastão
Leva folhas, lembranças e pensamentos
Mas o desejo que me ronda e possui
resiste e apela às ondas do coração.
Sigo ao intento das tempestades famintas
De amor, serenidade e algum otimismo.
Nenhum gesto teu me afasta ou reduz
Apenas torna mais forte as pequenas certezas
De que sem teus olhos por perto e tua boca sobre a minha
Nada é perfeito ou lateja como sentimento visceral.
Eles, os lobos, me devoram como aos bêbados mais incautos.
Sem eira ou beira quebram vidraças, comem ovos,
Viram latas nos becos e arrumam fixas de areias;
Por mim, sigam os restos da menina capaz de dobrar a intenção mais guardada nos recônditos vales anímicos.
Persigam o aroma da voz suave que chama por si mesma
na trilha dos lobos, esses vorazes ventos mineiros de minha infância.
Angeli Rose é carioca, geminiana, colunista da secção “Cultura e Lazer” do Jornal Clarim Brasil às quartas-feiras. Gosta de conversar e de praia, além de ler e escrever. É professora de Literatura Brasileira há mais de vinte anos, PhD em Educação, Doutora em Letras, Especialista em Jornalismo Cultural, entre outras formações. Suas pesquisas trataram da formação de leitores jovens, resultando no livro “Reflexões sobre experiências de Leitura e algumas contribuições sobre o mito de Don Juan”, pela editora Atena. Possui inúmeras participações em antologias do cenário lusófono, sendo a mais recente “Registros femininos” da editora Chiado. Além disso, é autora de Biografia não autorizada de uma mulher pancada, infanto-juvenil. É membro-correspondente da AMBA, foi agraciada recentemente com o título de “Embaixadora da Paz” pela OMDDH, além de ter-lhe sido outorgada a “Comenda Maria Quitéria – Heroína da Pátria” pela FEBACLA. Atualmente, dedica-se à função de Delegué pelo RJ a convite da “Cultive Art Littérature et Solidarité” e a coordenar o COLETIVO MULHERES ARTISTAS, sem deixar de dedicar-se ao segundo pós-doutoramento em Letras na centenária UFRJ. http://lattes.cnpq.br/4872899612204008 e Facebook : https://www.facebook.com/capitu33/
Obrigada!
Que lindo projeto!!!
Maravilha!
Grata pela leitura!
AR