Por Izabelle Valladares – Jornal Clarín Brasil JCB/Academia Mineira de Belas Artes – Belo Horizonte em 09/11/2020 às 10hs49mins
Bom dia, meninas e meninos, pais, cidadãos, irmãos e irmãs, primas, enfim… sociedade em geral. Ontem vimos “pipocar” nas redes o nome de Mariana Ferrer, uma mulher, aliás, mais uma mulher, vítima triplamente: Estupro, humilhação e culpabilidade da vítima. Durante toda história, a questão da violação do corpo principalmente feminino, se destaca em diversos casos de omissão, levando a vítima muitas vezes a não denunciar ou temer exatamente o que aconteceu com a Mariana. Nadar, nadar e morrer na beira da praia. Mas, toda cultura de estupro existente e persistente no Brasil vem da aceitação histórica de nosso país e apesar de muitas leis terem sido criadas, ainda existe muita influência financeira, agora, estupro culposo? Sem intenção de estuprar? Como assim? O cara a drogou sem querer, levou pro seu quarto sem querer, arrancou a roupa sem querer e escorregou e sem querer caiu com o pênis dentro dela e ejaculou sem querer também? Eu já ouvi falar em Ejaculação precoce, mas deste jeito, jamais.
Pois bem… Mas você pode estar se perguntando, onde essa aceitação começou?
Muitas pessoas dizem que o Brasil já nasceu marcado pelo estupro, pois comumente os portugueses violentavam sexualmente as mulheres indígenas. Alguns estudos afirmam que mesmo na época pré-colonial o estupro já acontecia e algumas tribos tinham punições bem severas para quem praticava violência sexual.
Ou seja, índio também estuprava índia.
As Ordenações Afonsinas (1500-1514), Manuelinas (1514-1603) e Filipinas (1603-1830), começaram a proibir esse tipo de violação em um momento em que as leis eram muito pautadas em preceitos religiosos e na noção de pecado.
No Livro V das Ordenações Afonsinas falava-se no “estupro voluntário” e no “estupro violento”. O primeiro caso ocorria quando se mantinha relações sexuais com virgens ou viúvas por sua vontade e deveria ser reparado com o casamento ou com a concessão de um dote. No segundo caso, aplicava-se a pena de morte. Nas Ordenações Manuelinas e Filipinas, as punições seguem as mesmas, cabendo também a possibilidade de degredo para quem não tivesse condições de pagar o dote ou de se casar. Vale ressaltar que essas penas não eram aplicadas quando a violência sexual era praticada contra escravas e prostitutas.
Com a proclamação da Independência, foi criado o Código Criminal do Império do Brasil que vigorou entre os anos de 1830 a 1891. Ao tratar do crime de estupro, ele previa a proteção da vítima, caso fosse uma mulher virgem menor de 17 anos. Fazia também uma distinção entre aquilo que chamava de “mulher honesta” e as prostitutas, havendo uma pena bem menor para o estuprador se ele abusasse sexualmente de uma prostituta. Ele previa ainda que a pena poderia ser extinta se o estuprador se casasse com a vítima, reestabelecendo, desse modo, a honra da mulher. Como na semana passada citei na página o Caso de Vaiola Franca que lutou contra o regime Italiano para não se casar com seu algoz.
A República trouxe um novo Código Penal, que teve vigência entre 1891 a 1932. Essa nova legislação definia estupro como o ato “pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não”. A proteção jurídica da prostituta continuava sendo negligenciada. O Código Penal de 1940 tratava o estupro como uma ofensa moral à família e à sociedade. Não era a vítima que importava ali, mas sim, a vergonha infligida contra o nome de sua família. Ao estuprador era aplicada uma pena de três a oito anos. Era considerado estupro “constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça”, outras práticas sexuais eram definidas como “Atentando violento ao pudor”. Ele trazia, ainda, algumas observações que colocavam em dúvida a culpabilidade do homem e afirmava que a “mulher nem sempre é a maior e única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais”.
Vigente até hoje, o Código Penal de 1940 norteia a legislação brasileira, mas passou por alterações ao longo do tempo. Em 7 de agosto de 2009, foi sancionada a Lei nº12.015/09 e ela trouxe uma série de modificações na legislação brasileira no que se refere a crimes sexuais. Uma delas foi a substituição da expressão “crimes contra os costumes” por “crimes contra a dignidade sexual”, deslocando a discussão do âmbito da moral da família e passando a considerar a dignidade sexual da vítima. Além disso, passaram a ser consideradas estupro outras práticas além da conjunção carnal. Conforme o artigo 213, configura-se estupro “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, o delito de Atentado Violento ao Pudor foi extinto e qualquer ato sexual praticado contra menor de 14 anos passou a ser considerado estupro. A pena para o estuprador vai de 6 a 10 anos de reclusão e, no caso de a vítima ter entre 14 e 18 anos, pode chegar a 12 anos.
Apesar dos avanços da legislação brasileira no que se refere ao crime de estupro, é possível perceber que aquela ideia de “mulher honesta” que vigorava no período colonial ainda é frequentemente evocada em casos de violência sexual, nos quais a conduta da mulher é frequentemente colocada em questão e, muitas vezes, ela passa de vítima a culpada pela violência que sofreu. Em muitos casos, a privacidade da vítima é violada, seu comportamento sexual é questionado e cria-se uma situação que a coloca numa posição de “mulher desonesta”, portanto, passível de ser estuprada. Desse modo, mulher estuprada passa a ser culpada pela violência que sofreu e chegamos a ter casos em que o estuprador é tratado como vítima das circunstâncias, como se não tivesse condições de evitar o abuso diante da situação provocada pela “mulher desonesta”.
Foucault afirma que “é a sociedade que define, em função de seus interesses próprios, o que deve ser considerado como crime”. No caso do estupro, por mais que seja um crime hediondo, que gere muita dor e revolta, muitas vezes, quando as acusações vêm à tona, dependendo da posição social do acusado, ele passa a ser tratado como alguém que foi vítima das circunstâncias, como se não fosse capaz de conter seus impulsos sexuais diante de uma mulher que foge daquele padrão de “mulher honesta” construído há tanto tempo, mas que ainda é o esperado quando se trata da liberdade sexual feminina. Assim, chegamos a aberrações jurídicas como a alegação de que possa existir um “estupro culposo”, como se fosse possível dizer que alguém comete um estupro sem ter intenção.
Essa vergonha não é só da Mariana, ela precisa ser de todos nós – homens e mulheres.
Izabelle Valladares é Jornalista e Psicanalista . Remonta a memória de livros feitos em folhas de caderno aos 6 anos de idade e de um jornal na adolescência.
Nascida em Niterói em 1976, tem mais de 20 livros publicados e participa de centenas de antologias. Mulher a Frente das 19 subsedes da Literarte, já percorreu mais de 64 países com suas obras. Tem uma página no Facebook Izabelle Valladares e a História para Curiosos com História Universal, conhecida como “A Rainha Louca”.
Neta do Jornalista Antônio Andrade, ganhador do Prêmio Esso em 1969, orgulha-se de sua ancestralidade negra.