“Sim, porque o leitor morre em cada sentido escolhido, deita-se para descansar da exaustão ao buscar compreender os espantos causados pela prosa plástica de Clarice Lispector“
Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB/Academia Mineira de Belas Artes (AMBA) – Belo Horizonte em 28/11/2020 às 05hs02mins
Clarice,
Vou confidenciar algumas coisas a você que sempre pensei em te dizer. Acho que o momento chegou.
Recordo a menina que vive ainda em mim. Essa menina alegre, porém, solitária. A minha menina só encontrava correspondências de sensações e sentimentos quando lia seus textos. Deixava de brincar de Pique-pega para ser pega por suas palavras. Aqueles momentos a sós com você era a minha hora da estrela.
Recordo-me que vivi a “felicidade clandestina” em alguns momentos da minha vida, ao conseguir livros que eu admirava emprestados para ler, já que as leituras “adequadas para meninas e moças” nem sempre incluíam você.
Hoje, a mulher que estou, ou as mulheres que me habitam e que descubro em mim reconhecem algo de você nelas.
Clarice, obrigada por me oferecer sua amizade através dos seus contos, suas crônicas e seus romances.
Enfim, obrigada pelos caminhos oferecidos.
AR
A breve carta dirigida à Clarice Lispector é uma confidência que compartilho aqui com você, leitor/leitora. No ano de comemoração do centenário da escritora, se estivesse viva, vi-me mobilizada a reler diversos textos dela e sobre ela, além de ter participado de uma belíssima reunião da AJEB-RJ, da qual sou membro, em homenagem à Clarice Lispector essa semana.
E ao lado disso, as comemorações em torno da obra de Clarice Lispector estão no mundo todo. Hoje, ela é inegavelmente reconhecida escritora de língua portuguesa, sendo objeto de estudo de muitas pesquisas, teses, com diversos admiradores em idiomas diferentes. Só a novela “A hora da Estrela”, por exemplo, conta com mais de 20 traduções. E parafraseando um dos ensaios de Clarice Lispector (“Traduzir procurando não trair”): e olha que deve ser difícil traduzir um texto de Clarice sem que se cometa alguma traição. Explico um pouco do muito que essa relação entre tradução e trair pode conter.
É preciso lembrar que o verbo “traduzir” na sua etimologia vem do Latim: TRADUCERE, “converter, verter, mudar”, originalmente “transferir, guiar”, de TRANS- mais DUCERE, “guiar, conduzir”. E num certo sentido, querer verter as palavras dos textos de Clarice em outra língua exige, no mínimo, compreender o transbordamento arriscado que se pode incorrer no ato de traduzir. Um transbordamento de vida potente, sem, no entanto, cair no excesso ou na abundância de palavras desnecessárias, porque isso não combina com o quase silêncio que alguns dos ditos de Clarice se nos apresentam. Ao lado dessa etimologia, há “trair” que também advindo do Latim, hoje chamada “língua morta”, mas que ainda dá muita vida à possível densidade da história nas palavras e gerou o verbo. ”Trair” vem de TRADERE, “entregar, passar adiante”. E este verbo se formava por TRANS-, “além, adiante”, mais DARE, “dar, entregar”. Tem a conotação de “entregar algo em prejuízo de outrem”, como quem passa informações que possam ser usadas com más consequências. Ora, nessa acepção, “trair” é algo negativo, entretanto, quando diz respeito às palavras em estado poético ou literário, o termo pode assumir o aspecto ambivalente de tirar de um para passar a outrem compartilhando mistérios, segredos, possibilidades, enigmas, estranhamentos diante das situações de vida ou do mundo fabulados pela escrita literária.
Muito se falou, escreveu e interpretou sobre a autora e sua obra, para alguns, de teor enigmático. Mas o fato é que a perplexidade do discurso clariciano é também a representação da perplexidade de qualquer indivíduo diante das experiências que se apresentam a ele. Mas dessa vez quero destacar Na cavidade do rochedo. A pós-filosofia de Clarice Lispector, de Roberto Corrêa dos Santos [https://claricelispectorims.com.br/wp-content/uploads/2016/11/na-cavidade-do-rochedo-a-pos-filosofia-de-clarice-lispector.pdf] . Trata-se de um livro eletrônico, estudo publicado pelo Instituto Moreira Salles (IMS), sob a coordenação do poeta e pesquisador, Eucanaã Ferraz (UFRJ). Meu destaque é disparado pela qualidade do texto de Roberto Corrêa que, como bem observou Victor Heringer (1988-2018), não sufoca o texto de Clarice.
A crítica literária e ensaística desenvolvida pelo poeta, pesquisador e professor Correa dos Santos “na cavidade” leva-nos a observar as inúmeras fendas de nós mesmos ao explorarmos os sentidos dos textos da autora centenária. Outra razão que me move na direção do ensaio do professor a ponto de aqui elegê-lo como referência é o fato de ao lê-lo, imediatamente ser remetida às aulas memoráveis que ministrou durante meu doutoramento na PUC-Rio no departamento de pós-graduação de Letras. Ouvir Roberto discorrer sobre qualquer tema que se dispusesse fazer era sinal de certa “alegria maior”, uma alegria que carrega espanto e algum prazer. A teoria literária ganhava sempre mais pontos entre seus alunos quando ele a percorria nos espaços conceituais sobre a tragédia grega, ou um conto de Clarice, por exemplo.
Ler o que Roberto discorre sobre “Água Viva” (1973) é uma provocação para correr ao texto da autora e deleitar-se com suas palavras, as dela e as dele sobre os escritos dela. Na secção “Flor que queima” do ensaio, adverte o crítico literário:
“A vida do espírito não nasce depois da frase, tampouco tem qualquer validade antes dela,
lá onde quer que atue, em alguma zona escura ou amorfa dos
afetos que não obtiveram ou corpo ou luz suficiente para a
visibilidade necessária a sua saudabilidade e ao crescimento da
alma; desenha-a a frase, e aquela, esta, e a frase pensa, pensa
a si mesma, faz que se a pense. E pulsa” .
Portanto, fica o convite à leitura do ensaio de Roberto Corrêa, preferencialmente, depois de ler alguns textos de Clarice, ou Chaya de batismo.
Depois dele, de ler o referido ensaio, volto aos textos de Clarice, aparentemente munida, alimentada de ideias, iludida, acreditando estar mais preparada para estar com a “amiga”, em seus textos. Nada! Ninguém se prepara para morrer nos textos da autora. Sim, porque o leitor morre em cada sentido escolhido, deita-se para descansar da exaustão ao buscar compreender os espantos causados pela prosa plástica de Clarice Lispector.
Recordo ainda que a primeira vez que li Clarice, aos 16 anos, estava lendo também, por conta própria, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Leitura pouco recomendadas naqueles anos 70. “A paixão segundo G.H.” me ocupou por completo. Clarice afirmava em suas reflexões que “escrevia com o corpo”, pois em mim sentia que lia sua obra com o corpo. Um corpo ainda pouco conhecido e pouco explorado, mas que indicava as sensações de desconforto, de prazer, de estranhamento e de perplexidade a cada frase contemplada. Era como se meus olhos ficassem assustados com o que se poderia fazer com a linguagem e era muito diferente do que aprendia nas aulas de língua portuguesa (embora as adorasse!).
Depois, quando fui ler “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” e “A hora da Estrela”, tudo foi um forte soco no estômago, juntando Nietzsche então? A leitora nascida em mim estava num ringue, porém, só apanhando sem esboçar qualquer reação. Pode parecer meio masoquista ler para apanhar e ainda gostar. Acontece que os melhores autores fazem isso conosco, sutilmente ou não, eles nos dão prazer pelo prazer que nos roubam, aquele da realidade fácil, do riso néscio. Não senti prazer algum ao “ver” G.H. comendo uma barata de secreção branca, mas até hoje sinto como se o inseto se desfizesse em minha boca de leitora. O silêncio na narrativa depois desse ato repulsivo e extremo convocou meu silencio após a leitura (e releituras, quando as cometo!)
Mas a trajetória de Clarice Lispector é tomada de episódios bastante curiosos e inusitados, tanto no âmbito pessoal, como no profissional, como aquele célebre “jantar que não aconteceu” narrado por Chico Buarque. O encontro se deu quando ele tinha 22 anos e fora convidado por ela para jantar na casa da escritora na zona Sul do Rio de Janeiro, perto de onde o músico costumava sentar para beber com Vinícius de Moraes, Carlinhos de Oliveira e outros. É só visitar o vídeo em que o compositor conta como se deu [https://youtu.be/-htgwNuBCbs ]. A epígrafe que poderia ser indicada aqui seria: “Ficamos sem saber a essência do mistério./Ou o mistério não era essencial,/era Clarice viajando nele (…)”,de Carlos Drummond de Andrade em “Visão de Clarice Lispector”.
A crítica literária nem sempre fora entusiasta das criações da autora. Nos anos 40 do século XX, por exemplo, Álvaro Lins, crítico literário, pronunciou-se como desejoso de ver Clarice Lispector com um “verdadeiro romance”, isto é, “com começo, meio e fim, além de personagens bem-configurados e enredo bem-delineado”, como observa o pesquisador Evando Nascimento (UFMG) em “Clarice Lispector: Uma literatura Pensante”. Registra ainda que nos anos 70, Clarice buscando subsídio para “Água Viva” no Instituto Nacional do Livro, teve a negativa do sensor de então, Hélio Pólvora, porque o texto apresentava não se enquadrava no gênero. O destaque dado pelo autor da pesquisa como resposta a tais desencontros foi retirado de “A descoberta do Mundo”, livro de crônicas (1984): “Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance. No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E quando escrevo não é o clássico romance. No entanto é o romance mesmo. Só que o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o mais possível se aproximando e me aproximando do que estou agora pensando na hora de escrever. Aliás, pensando melhor, nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo”.
Portanto, o leitor ou a leitora que queira aceitar meus convites para ler Clarice Lispector, entre outros autores, por ocasião do centenário a ser completado em dez de dezembro próximo, deve ter em mente que qualquer convenção estabelecida sobre o romance, ou mesmo a busca de aventuras e ações não serão encontradas nem nos romance nem nos contos. Haverá, sim, uma aventura a ser vivida, mas a aventura do pensamento, assim como pode ser ao ler Franz Kafka; James Joyce, Guimaraes Rosa, Virginia Woolf e muitos outros. Porém, sonhe com essa amiga! Despeço-me com um poema de Clarice Lispector:
Sonhe
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas.
Angeli Rose é carioca, geminiana, professora, pesquisadora e escreve semanalmente para o Jornal Clarín Brasil – JCB (digital), aos sábados; é membro da AMBA, foi agraciada recentemente com o premio Melhores do ano 2020(Literarte) na categoria “Cronista”. É Dra.h.c. Multi em Educação, Literatura e Belas Artes, PhD em Educação (UFRJ), Embaixadora da Paz (OMDDH),autora de “Biografia Não Autorizada de Uma Mulher Pancada” e coautora em diversas antologias nacionais e internacionais. Atualmente, dedica-se ao segundo Estágio Pós-doutoral em Letras na centenária UFRJ e a coordenar o Coletivo Mulheres Artistas, entre outras atividades. http://lattes.cnpq.br/4872899612204008
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Obrigada. Até sábado!
Muito legal, amei.