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INQUILINO DO IMAGINÁRIO – Por Angeli Rose

Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB News – Belo Horizonte em 17/12/2020 às 12hs13mins

                               INQUILINO DO IMAGINÁRIO

A finitude é uma certeza que assusta a muitos quando sentida na intimidade. Ela cobre o olhar da sensatez com o pó da ansiedade. Eu ficara apavorado com a ideia de estar contaminado, mas saía todos os dias para fazer o meu trabalho em meio a uma cidade deserta e abandonada. Enquanto Lúcia, do seu jeito, mantinha-se tranquila e absorta em suas atividades domésticas. Entusiasmada colocava a mesa do jantar com uma receita nova a cada dia, depois de explorar com afinco o You Tube. Contava-me assim que eu chegava como descobrira um jeito rápido de cozinhar com macetes impensáveis até a entrada da pandemia em nossas vidas de braços dados com o isolamento social imposto.

No início de mais um dia, cedo, depois de caminhar mais de quinze minutos até a estação de metrô, ao entrar no trem percebia a apreensão nos rostos mais conscientes do perigo iminente que pairava sobre os corpos em movimento. Mas antes mesmo no trajeto da caminhada observava algumas mulheres-fitness sorridentes, com máscaras no queixo. Aliás, nunca imaginei ser o queixo região tão especial no desenho de caras e bocas. Havia dias em que meditava sobre os contornos escondidos sob o tecido, geralmente branco, de forma aproximadamente triangular. E me perguntava circunspecto, será que ela tem furinho no queixo? A sensualização do rosto talvez fosse uma fuga para o terror que guardava dentro de mim sobre a doença circulante, a COVID-19. Outros dias, acordava com a questão embutida no pensamento inquieto: Por que será tão difícil para algumas pessoas compreender que não somos nada sozinhos e que essa pandemia viera para por à prova nossa capacidade de reinvenção em condições inóspitas? 

capa de jornal 1918 gripe espanhola
A primeira página da “Gazeta de notícias” de 1918, da então capital do país, Rio de Janeiro.

Em tempo de questionamento e reflexões seguia para o café à mesa em silencio, ruminando sobre as possibilidades de invenção do vírus e da doença, como um importante filósofo escrevera recentemente. Agora me foge o nome dele. Agora não. Sempre esqueço o nome do dito cujo que vira e mexe tem um livro lançado e logo comprado por mim. Seriam os primeiros efeitos sob o “Corona”? Nessas manhãs, os queixos nem eram notados e a caminhada até o metrô ficava mais curta a ponto de nem me dar conta das ruas por que passava. Era hábito meu andar muito, o máximo possível para ir aos lugares a trabalho ou não. Era mania minha pensar e pensar e pouco concluir em minhas reflexões. Era uma loucura permitida demorar-me nos assentos do metropolitano lendo um novo livro comprado no sebo bem próximo à empresa (às vezes mais de meia hora!).

Lúcia era meio distraída em alguns momentos com nomes e horários, entretanto, era bastante responsável com suas tarefas profissionais. Estava agora às voltas com a divisão do seu dia entre cozinhar para nossa família com esmero e criatividade, sem poupar tempo (e dinheiro!) e elaborar os roteiros de lives e aulas on line, além das consultas que a direção da escola fazia acerca dos encaminhamentos a serem dados no âmbito pedagógico para aqueles que precisassem de maiores cuidados durante o isolamento social. No café da manhã me guardava de sua programação, entendera desde muito antes que eu precisava de mim para começar mais um dia de ofício. Sabia, inclusive, quando eu a celebrava sem pronunciar uma palavra, mas com um olhar de admiração e desejo por tê-la como companheira no cotidiano amoroso que reinventávamos por anos juntos. E quando tentava puxar uma conversa matinal, rapidamente mudava de cômodo para continuar falando (sozinha),com certeza de que eu não a ouviria, porém, não a interromperia pedindo para não contar nada naqueles minutos depois do banho demorado e antes de sair apressado em cima da hora para repetir o fluxo de pensamento guardado. Parecia que minha querida adivinhava a explosão que estava dentro de minha cabeça com a nova forma de vida que estávamos levando tão perto um do outro e ao mesmo tempo tão necessários ao mundo lá fora. Ela era consultora pedagógica, o que lhe facultava atuar com os funcionários e pais da escola em que trabalhava a distância. E seu “instinto” investigativo adquirido depois do mestrado e do doutorado em psicologia e educação iam mostrando o caminho possível para gerenciar os conflitos escolares. Agora, até para cozinhar fazia da tarefa mais um campo de experimentação e estudos. A mais nova surpresa fora ter sido convidada para escrever um prefácio do livro de sua amiga Eli. Já falando animada e com certa aceleração, no jantar me contava o quanto gostara do convite para prefaciar mais um livro sobre ensinamentos holísticos, alternados com poesia da melhor qualidade. Asseverava para mim com um juízo estético de dar inveja a qualquer profissional das Letras. Nessas conversas, eu percebia que ela gostaria que aprofundássemos um pouco mais os assuntos apresentados, não sei como captava a realidade assim, mas a convivência amorosa com Lúcia dera-me a ousadia de sair de mim e projetar-me um pouco na alma alheia, às escondidas, claro. E tenho quase certeza de que a sábia e que bruxinha da minha mulher sabia do medo que me movia em meio à pandemia. O medo de que a finitude estivesse mais avizinhada em nossas vidas do que poderíamos desejar.

De fato havia uma vizinha de porta com nosso apartamento que intrigava e fustigava a nossa paz em algumas noites. A mulher vivia sozinha fazia anos e raramente um jovem barbudo a visitava, o que nos fazia deduzir que poderia se tratar de um parente, quem sabe um sobrinho (?). A dúvida que pairava sobre nosso sofá de parede com o outro apartamento não dizia respeito ao nosso bem estar, no entanto, como não acrescer ao cotidiano uma pitada de mistério sobre a vida dos outros? Isso conferia certo tempero às ideias perdidas e também ao pouco tempo à toa que encontrávamos entre uma mensagem e outra, entre um vídeo e outro, entre uma página lida e outra. Madura de idade, como se costuma dizer, era possível escutar em algumas noites o tac-tac do teclado do computador. Façanha só realizável no isolamento social, durante a pandemia. Aliás, um beija-flor na janela, madrugadas silenciosas, sem gatos transando no quintal do vizinho abaixo, quietude da senhora do andar superior que costuma gritar sem parar xingando a irmã que até a internou certa feita. Todas essas conquistas para ganhar o silêncio e a calmaria devem ser creditadas à pandemia e ao isolamento social. Acho que a angústia que percebo em mim pode estar também em outras pessoas. 

Federações das Indústrias, SESI, SENAI e IEL dos estados já adotaram medidas contra o coronavírus
Para não dizer que não falei de flores Detalhe do Corona vírus em microscópio(OMS)

A pandemia trouxe com força e carga a consciência de nossa finitude e certa vontade de sair por aí falando e fazendo coisas antes que seja tarde. Afinal, quem será o próximo sorteado na loteria do vírus? Quem receberá por gotículas a visita da morte? Aquela vizinha não me parecia arriscar sua paz e sua vida. Isolada, tranquila, só se fazia notar nas noites em que ia pra janela bater panela. Eu sei lá que diabos era aquela panela que arrumava que se fazia mais alta no som do que todas da vizinhança. Dava-se com todo esmero à bateção ao que tudo indicava pelo som que ouvíamos. Não imagino do que vivia nem o que fazia se é que fazia alguma coisa. Sua fisionomia nem era tão simpática, mas sempre que cruzava comigo no corredor abria um meio sorriso. Havia dias em que ríamos do lado de cá ao ouvirmos as músicas cantaroladas. Ela só cantava o refrão pelo que entendíamos. Lúcia era mais condescendente e amenizava as investidas de banheiro da mulher. Dizia que era sinal de alegria e que era melhor ouvi-la assim do que chorando. Chegou a pensar em fazer um doce, ou um bolo e levar à vizinha, mas sua generosidade ainda encontrava travas ante o desconhecido. E se ela estivesse contaminada e assintomática? Voltava a dúvida infernal em minha mente cheia de preocupações com a existência ameaçada pelo Corona vírus.

Quase ia esquecendo de contar sobre nossos bichos. Tínhamos um cachorro, o Theodoro. Um Terrier  mini e branco, além do gato Félix que  subia pela casa o dia todo, explorando o território à sua disposição.  Félix tinha o nome em homenagem ao personagem animado de nossa infância. E Theodoro assim se chamava porque nos parecia um nome nada apropriado a um cachorro, então, por isso mesmo parecia ser perfeito, pois Theodoro quando chamado, aos ouvidos alheios, inspirava a imaginação de tratar-se de um amigo qualquer, o que não deixava de sê-lo. Já Félix era o típico gato branco peludão, lento, observador, sagaz e pouco afeito a barulho. Era um vira-lata com ascendência persa, de uma beleza singular. Quando dava de me encarar com os olhos vivos e arregalados, eu podia contar que ele estava a querer me mostrar algo, ou alguma coisa quebrada pelo rabo, ou avisar sobre algo a suceder. Há momentos em que me pego mais empolgado com o gatuno grande largado em cima da estante da sala. Ele me instiga mesmo como dono, só pelo fato de me contrariar diante de qualquer comando. É o que faz dele um gato e, principalmente, o mais querido e especial gato em nossa casa.

Theodoro cobre aquele lado do cotidiano em que queremos ser cortejados, dar carinho pro ciumento e carente cãozinho. Mas também desperta um amor sem fim pelo serzinho tão chegado e chameguento. Há noites em que na hora do jantar ele se posta debaixo de meus pés e entre minhas pernas só pra ser aquecido e lembrar-nos que está ali à espera de nossa mais ínfima atenção carinhosa. E pensar que todo esse cenário poderia ir ao mar ou aos céus em menos de vinte e quatro horas por causa de um vírus agressivo que derrubava sonhos, vindas e esperanças?! Era assim que eu vivia ultimamente, a cada passo, a cada hora, a cada dia um alcóolico anônimo. Engraçado a princípio, mas não era para mim. Só por hoje, me dizia no íntimo. Só por hoje e tenho que agradecer ter sido poupado. Pensava. E reincidente com a rapidez da contaminação exponencial desse vírus, o pensamento voltava como obsessão. Dono de mim, o vírus imaginário deformava a visão que tinha de mim no espelho pela manhã. Fazia surgir coceiras, tosses, pigarros, dores de cabeça, coceiras, insônia, ansiedade, respiração lenta sem vontade de me exercitar. Era a hora de pedir socorro a Lúcia. Help, querida! Ouça-me, por favor. Seu amor está morrendo por dentro, ficando sem esperança, entusiasmo e vida. Ensaiava inúmeras vezes com a cabeça pressionada sobre o travesseiro no cair da madrugada. Lúcia, minha amada, nada sentia ou desconfiava. E se percebia, respeitava o meu silêncio barulhento. Nesses momentos, Theodoro vinha para perto da cama e se enfiava debaixo da nossa na ponta de maneira que eu o pudesse acariciar por muito tempo. Aquilo me acalmava a ponto de nem me lembrar de pela manhã no café pedir ajuda a Lúcia. E me perguntava: Se eu que tenho Lúcia, Félix e Theodoro tão perto de mim, como será que a vizinha lida com essa iminência da morte trazida pelo novo Corona vírus? Com quem será que ela se abre nos momentos de dúvida sobre a sua longevidade?

Eu tinha muitos afazeres como administrador do Hospital do Coração e preferia estar in loco a seguir no home office organizando e planejando  a gestão da instituição agora em atividade plena e a todos vapor. Os casos chegavam diariamente e aos montes. Os EPIs pareciam sumir de nossas vistas. Eram mil por dia e os fabricantes não estavam mais entregando nos prazos certos. Aquela ameaça à normalidade reserva conservada no hospital, começava a tomar conta de meu dia já aterrorizado pela danada da finitude. A palavra era soletrada em meus pensamentos a cada baixa registrada no hospital que algum médico vinha me contar. Por que a mim? – me perguntava. Logo a mim?

Era mais um leito disponível e a informação valia ouro a essa altura da pandemia e dos convênios. Os fiscais da secretaria de saúde estiveram um dia desses no hospital e ficaram admirados com a organização de nossa documentação e com as informações prontas sobre as estatísticas sob vários ângulos e perspectivas. E foi num dia extenuante no hospital que ao retornar para casa encontrei Lúcia, meu amor, acamada, queimando em febre, estirada em nosso quarto, sem comer o dia inteiro. Pronto, o invasor entrara em nossa casa sem ser convidado. E poderia ainda sair levando Lúcia ou a mim. E questionei-me sobre estar saindo de casa diariamente e retornando a ela com a ameaça constante de estar contaminando minha mulher. O egoísmo nem me deixara antever que essa espera e expectativa dia após dia arrastavam o receio junto nos pensamentos de Lúcia. O fato de ter fé e orar constantemente, até cantando, Lúcia sentia-se capaz de superar essa dúvida sobre a integridade física ao dividir o cotidiano comigo que voltava do hospital. Perdi o chão e a vontade de trabalhar. Pedi imediatamente uma semana para cuidar de Lúcia, mas não fora possível. Tive de interná-la no dia seguinte e de lá ela não voltou mais. E na noite de sua morte ao voltar em casa para pegar uma muda de roupa, ou melhor, o vestido com o qual Lúcia seria enterrada, encontrei a vizinha misteriosa. Deu-me certa vontade rir ao mesmo tempo o desespero de não ter mais com quem compartilhar aquela visão. A mulher parece ter atravessado meu estado inconsolável, embora sem lágrimas naquele momento, e perguntou “se estava tudo bem?” Silenciado estava e fiquei. Apenas acenei a cabeça mostrando a negativa. A vizinha imediatamente perguntou por Lúcia. E nem tive coragem de contar-lhe o que acontecera a nós dois, ante a tragédia que se estabelecera sobre nós. Entre o céu e a terra nenhuma certeza é capaz de perdurar ainda científica.

No dia seguinte enterramos Lúcia rapidamente, depois de velório insignificante. Eu e o coveiro éramos os devotos à beira da cova de Lúcia. O jazigo da família estava ocupado por tios, um sobrinho e amigas de minha tia Eudóxia que só vinha a minha casa uma vez ao ano com presentes e comentários bem desagradáveis acerca da arrumação de nossa sala. Eu levantava a cabeça e via um mundo muito diferente daquele que acolhera a pandemia. Ante tantas campanhas de solidariedade para levar ajuda às periferias do país, as mensagens de pêsames da escola e dos alunos, professores, funcionários e pais se avolumavam sem que eu tivesse coragem para respondê-las. Minha indignação era sobre a falta de tempo que tivemos. Eu sabia de alguns pacientes que ficavam até sessenta dias, entubados e em coma induzido. Saíam daquele estado até saírem do hospital com festa e palmas pela força. 

Capa de O Malho, 1º de março de 1919
Capa de “O Malho”, 10. De Março de 1919.

Não tenho certeza de que era a vontade de viver que salvava as pessoas com um sistema imunológico forte, porque Lúcia tinha muita vontade de viver e estava feliz conosco. E minha mania de meditar e refletir só tinha sentido porque depois podia dividir com Lúcia algumas das muitas perguntas que pululavam em minha cabeça. A resposta sabida sobre a finitude não chegava com o sentimento e a dor pagos. O sofrimento era inevitável e essa era minha dúvida. Se seria possível estar sem pertencer, ou estar com alguém e não sentir a sua perda. Impossível, respondia para mim mesma. Ser finito é o que há de mais próprio em nós, seres vivos, no entanto, a finitude ao lado de outros entes queridos faz a perda tornar-se interminável. É como se o infinito tomasse braço com a finitude. Então, bastava seguir na finitude sozinho, solitário que mais nada seria capaz de nos atingir, desenvolvia em mim alguma tese que e minha dor em meu mais profundo egoísmo mortal.

Félix e Theodoro sentiam falta de Lúcia. A casa estava jogada, uma bagunça, largada, empurrada nos dias pela fraqueza que tomara conta de minhas noites, consequentemente da total falta de vontade de viver. No hospital deram o tempo que fosse necessário para eu me restabelecer. Mas quem é capaz de se “restabelecer” à perda do ente amado? Quem é capaz de viver normalmente depois do devastador e senhorial vírus ameaçador. Corona não era mais uma ameaça em minha vida. Ele era uma realidade que alguns ainda insistem em dizer que é uma “invenção” ou que é uma “gripezinha” um pouco mais chata de ser curada. Se fora criado ou não em laboratório, chinês, americano, ou sei lá o quê, isso nem me importava mais. Eu havia perdido a minha Lúcia, a minha luz. Às favas Agamben, a “pedagogia do vírus”. A dor não sabe como se comportar ou a quem recorrer. A dor bate e bate como chibatada na alma desavisada, arrependida por não ter cuidado melhor de si e do outro. 

As notícias da estatística sobre a doença não davam rosto aos mortos por Covid-19. A guerra das narrativas ativava as vaidades políticas em meio a um sistema injusto e desigual socialmente. A minha revolta aumentara por ser funcionário de hospital que lidava com números sobre a pandemia. Crescia porque arrancava a certeza de que tudo estava caminhando para o melhor. O pessimismo estava distante, o que estava bem perto era a morte de Lúcia e de outros tantos colegas que se dedicaram aos cuidados de pessoas que nem conheciam seus pacientes. O vírus era um sniper que tinha o ser humano como alvo e o acertava invariavelmente quando o contexto fosse de guerra. E estávamos em guerra. Há muito a humanidade vinha em guerra com seus princípios e propósitos. Eu nem sei por que ainda pensava nessas coisas e questões, de nada estavam mais valendo em mim. Eu precisava dar conta da casa bagunçada e dos bichanos que dependiam de mim para comer, tomar banho e viver melhor. Se algum representante de bons tratos dos animais batesse desavisadamente em casa, certamente eu seria preso e processado, dando a parecer que maltratava meus bichinhos.

A vizinha, Dona Alice, depois vim a saber, continuava em sua solidão intrigante, com a cantoria irregular, o porteiro recolhia o lixo diariamente de nossas portas, os informes traziam novidades sobre corrupção, o beija-flor pousava vez por outra em minha janela, a outra senhora do superior gritava pouco, as mulheres continuavam caminhando com máscara no queixo em conversas animadas. A vida continuava em meio à presença do vírus. A bailarina que dançava no condomínio conhecera seu novo namorado durante a pandemia. O homem da pipoca recebera ajuda de vários pais comovidos com a pobreza momentânea daquele microempreendedor. Os enfermeiros batiam palmas pela cura de cada paciente que já vivera o risco, e eu não conseguia ver qualquer beleza em tudo isso nem na nova via de reclusão. Mas Alice parecia estar bem à vontade com seu cotidiano solitário, até o dia em que decidiu dirigir uma palavra a mim e puxar conversa enquanto esperávamos o elevador. Contei-lhe logo que Lúcia havia sido contaminada e falecera. Fiz isso para cortar conversa e não para receber sua condolência ou pena. Ela fora mais rápida e me disse numa frase certeira que “a raiva devia ser enorme” para quem perdia seu amor para a pandemia. E que o pior seria a dúvida eterna se fora responsável ou não pela contaminação do outro. Parecia ter penetrado em meus pensamentos e em minha alma. Só me faltava essa, depois de conhecer tantos especialistas escalados para os programa televisivos, radiofônicos e digitais sobre o Corona vírus, ter de lidar com uma visitante de minha sensibilidade que descobrisse que muito antes de Lúcia ser contaminada, meu pensamento já tinha o vírus como inquilino de meu imaginário. Ele, o Corona, criara vida em meus dias a ponto de fazer-me ficar surdo e cego para a vida. 

Duas vezes na semana ia ao hospital e nos dias alternados ficava catatônico, parado, buscando forças e fé aonde não havia, dentro de mim. As vidas estavam destruídas sem que soubessem a extensão do estrago. Vida aos consertos! Saía de dentro de mim uma rápida lembrança de como era bom ter Lucia no chá eventual da tarde. Vez ou outra até que me pegava pensando qual seria a fantasia do carnaval de 21, caso ele fosse acontecer? Sem dúvida, no humor mais amargo e tonto seria a fantasia de “corona”. Nossa resiliência é debochada em relação às tragédias mais significativas e profundas, me ocorre.

https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/image/contentid/policy:1.2214801:1589928799/image/image.jpg?f=default&$p$f=9563970
Carnaval 2020, Alemanha.

A falta de tempo é o que rege a vida moderna pelos tantos afazeres a serem feitos dia a  dia. A falta de tempo é o que também rege o tempo atual do “Covid-19”. O tempo dos afetos, dos abraços, das buscas dos pais perdidos, do adiamento das brincadeiras suadoras. Continuamos com a falta de tempo como a desculpa para adiarmos o que é essencial para convivermos melhor. A falta de tempo para fazer as contas básicas e ver que a dispensa daqui de casa está farta, mas a da senhora camelô da esquina, Dona Maria, lembra-se dela? Está vazia. Time is Money; Time is life.

Sem preocupações extras, está bem? Afinal, a vacina começou em algumas partes do mundo (e você nem pode usar as suas milhas para ir tomá-la…). Exagero? Esperança?

Será que ainda faz sentido o soar dessas expressões para quem não tem nenhuma “Lúcia” na família? Para quem não tem pai médico? Ou amiga enfermeira? Para quem está até essa hora no barzinho do point do bairro curtindo o encontro com a turma para jogar conversa fora? Está sem máscara, estreando o batom de última geração anunciado que fixa até o fim da noitada, ou no amanhecer da balada.

Do outro lado da cidade que você só conhece quando estoura mais um sucesso de funk, ou um “robocope” sobrevoa a festa que se prolonga às 7 da manhã com micro- shorts esbarrando em fuzis balançando. Não são do seu mundo. Eles são de outro mundo, você pensa. Aliás, é exatamente essa fragmentação que fizeram a todos nós acreditar. Vivemos em mundos diferentes, embora no mesmo planeta. Vivemos um “time” diferente, assim como em “vibes’ outras entre nós. Eu tenho o meu mundo ,a minha “thurma”. Você vive o seu mundo com seus amigos, amigas, crenças. Outros, eles, vivem em mundo diferente. E que não se misturem, a não ser em paradas de sucesso que param o sucesso de alguns para que outros ascendam. É a vida, baby…

Mas posso garantir a você, leitor, leitora, que o mundo em que cortam o clitóris de meninas é o mesmo em que o “corona vírus” circula. O mundo em que mulheres resistem na luta por melhores condições de vida é o mesmo em que as iranianas são oprimidas e já contabilizam algumas conquistas. O mundo em que os catadores de lixo reciclam materiais e fazem arte é o mesmo que produz pessoas que acham que fala-se demais de negros e menos de brancos atualmente. É o mesmo mundo que executou Marielle Franco há 1000 e tantos dias, como executa mulheres outras brancas, negras, jovens, senhoras, por aí. É o mesmo mundo que usa os casos de pedofilia noticiados como apanágio para a impossibilidade de atacar o crime organizado e exterminar suas organizações. Isso não quer dizer que os crimes não devam ser noticiados e os criminosos ser punidos. Isso quer dizer que é preciso ler mais e além do que se lê e se escreve. Porque o mundo não é fragmentado. A leitura das realidades é que está sendo fracionada para não cansar as nossas retinas em caminho cheio de pedras. Aquele 1%  que enriqueceu na pandemia em nada tem a ver com os tantos outros % que empobreceram na mesma pandemia de 2020. Não deixe de ouvir a realidade cindida na marchinha de carnaval de 1920. [ https://youtu.be/im6vnSUAUL4] . Ela está citada também nas “Memórias de Nelson Rodrigues”, de 10 de março de 1967 no “Correio da Manhã”.

Devo ter mais de 40? Não consigo compreender essa escolha de zoar em turma? De abraçar demoradamente os amigos? De só sentar em bando com o copo de plástico por horas na mão, a mesma poção de cerveja quente e um sorriso gostoso para o carinha, digo, bofe, que chegou há pouco no grupo vizinho? São tantas possibilidades e nenhuma…

Você tem até a próxima semana para responder, indo ou deixando de ir ao barzinho…

ANGELI ROSE – Brasil – Poesia dos Brasis – Rio de Janeiro -  www.antoniomiranda.com.br

Angeli Rose é carioca, professora, pesquisadora sobre a cidade do Rio de Janeiro em seu pós-doutoramento em Letras na centenária UFRJ. Autora de Biografia não autorizada de uma mulher pancada, entre outras produções. É coordenadora do Coletivo Mulheres Artistas e membro de diversas associações e academias de Letras m, Artes e Ciências, atua em diversas frentes culturais no ativismo feminista, de negritudes e em prol pelo direito à Literatura. Recebeu recentemente mais um título honorífico da FEBACLA de Dr.h.c em Literatura. O conto é inédito e foi escrito em momentos diferentes da pandemia. Geminiana, gosta de praia, vento no rosto, mas há 9 meses não sai de casa ,a não ser para o indispensável. Recebe muitas caixas de encomendas em sua porta. Está contaminada e continua o isolamento, agora com certo susto durante a noite quando perde o sono. http://lattes.cnpq.br/4872899612204008 e facebook: capitu nascimento  Instagram: @nascimento capitu

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