Cultura/Lazer Mercados/Negócios

Vida que segue… Por Angeli Rose

 “O silêncio dos ritos tem a profundidade das origens”(Marcel Detienne)

Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB News – Belo Horizonte em 05/01/2020 às11hs13mins

Ele saiu à francesa. Vazou. Foi. Xô 2020. Demorô! Depois de encontrar com F., amiga estreante aqui, no último dia do ano que se esvaiu em meio aos impropérios proferidos a ele, me dei conta de que ele já tinha ido embora. Eu diria que “saiu à francesa”, embora os franceses nem gostem dessa expressão tão presente na língua portuguesa. Alguns historiadores dizem que se refere à batalha perdida pelos franceses ante a rivalidade antiga entre ingleses e franceses, na chamada “Guerra dos sete anos” de 1756-1763. Mas não é certo que tenha sido exatamente por aí. Curioso é que na França há a expressão equivalente filer à l’anglaise, com teor bastante pejorativo em relação à atitude inglesa. Quem teria de fato o hábito de sair de festas, por exemplo, de modo deselegante e até rude? Franceses ou ingleses? 

Mais perto de nós, há outra tese registrada por Antenor Nascentes em seu “Tesouro da fraseologia brasileira” registrou: “Este costume inglês (…) foi moda em França no século XVIII e da França passou a outras nações”. Já Câmara Cascudo em um dos seus trabalhos sobre expressões tradicionais no Brasil comenta que seria uma expressão relacionada ao “imposto de saída” de indivíduos por portos portugueses e da colônia. Esse imposto permitia que a saída fosse franqueada, isto é, sem impostos. E cá entre nós, não foi o que aconteceu com o ano que passou? Ninguém fazendo mais questão da presença dele, 2020, na festa da vida. Queríamos mesmo que ele saísse sem “dizer” mais nada porque o que menos ele permitiu foram exatamente as conversas boas entre amigos e familiares. Houve interações sim, porém, o termo é mais impessoal e tem a ver com a virtualidade das relações humanas no contexto imposto.

Não teve festa, fogos, barulho, música, baile, tanto fazia estar de branco, vermelho ou preto, de pijama ou a rigor. Ele se foi de fininho, discreto em quase todas as partes do mundo. Saiu sem as gargalhadas ou mandingas usuais. Simplesmente foi com a mudança dos ponteiros dos relógios mais importantes e notáveis das metrópoles badaladas e nos ponteiros daqueles que temos em nossas estantes ou mesinhas de cabeceira. A chuva no Rio de janeiro, por exemplo, na tarde do dia 31 parecia estar lavando e serpenteando os caminhos diversos que foram obstruídos pela pandemia do Corona-vírus. Ela, a famigerada pandemia, ainda está entre nós, é verdade, mas com uma percepção em mutação, tal qual o vírus ágil. Uma visão do trânsito das vacinas pelo mundo. Pedimos silêncio a ele em respeito aos gritos sufocados de dor e tristeza das famílias dos que se foram e perderam a guerra para a doença. Exigimos total desapego porque todos queríamos mesmo que o indesejável ano mais do que discreto saísse de nossas vidas ,embora não vá sair tão cedo de nossas memórias, sem levá-las. Na guerra contra a pandemia, a negociação foi planetária e teve como primeira condição o despacho de 2020. Lá em Março já queríamos que ele se fosse, nos abandonasse. 

torre eiffel, 1914 por Robert Delaunay (1885-1941, France) | Reproduções De Pinturas Robert Delaunay | WahooArt.com

A Torre Eiffel de Robert Delaunay, 126 x 93 cm – 1914 – (Solomon R. Guggenheim Museum (New York, United States)

Ele, o ano impensado, foi a “torre” na corrida do homem pelas conquistas intermináveis. Para alguns, o tomaram como castigo, outros o quiseram como alerta, outros ainda partiram para as contas e as estatísticas e nos avisaram sobre os inexatos cem anos. Cem anos? “Ele realmente tinha passado pela morte, mas retornou porque não suportava a solidão” (Cem anos de Solidão de Gabriel Garcia Marques). O vírus passou cem anos distante da humanidade e voltou na faceta Corona querendo e pedindo companhia a nós, mas não o aceitamos e, através da ciência, fomos empurrando para fora do cotidiano o vírus maligno e com ele o ano tão marcante. E aos sobreviventes, aqueles que estiveram próximos à morte, nossas preces, pensamentos de força e amor fizeram com que estes retornassem e pedissem nossa solidariedade. E os que se foram não partiram por falta de amor ou desejo de ficar conosco, somente porque o tempo deles não encontrou o tempo da vacina. 

A vida é encontro e desencontro. Por isso, para nós que ficamos depois de termos a certeza de que 2020 saiu de cena, temos o compromisso de fazer de nossa passagem aqui pelo planeta Terra como presenças desejáveis para não termos de sair à francesa nos encontros da vida. 

Foi! Foi com ele, 2020, a insensibilidade; foi a ignorância; foi o deboche; foi a pobreza de espírito; foi a mentira sobre a realidade pandêmica. Quem ainda pretende ter em seu círculo tais valores, sensações ou atitudes? E nessa saída de fininho como cantou Eduardo Costa: E me entreguei pela beleza/E ela saiu à francesa/Pra onde foi eu não sei. E admito que eu gostaria que esse cantor também saísse sem ser notado da cena artística brasileira levando junto certo governante, sem aviso prévio. O mesmo não desejaria para Marina Lima na parceria com seu irmão poeta, Antônio Cícero (imortal da ABL).  Com À francesa , ela reforça nosso incômodo pelas restrições ao sugerir: “E se você saísse à francesa/Eu viajaria muito mas/Muito mais(…)”. E diga quem não pensou isso sobre 2020? Quantas viagens adiadas? Quantos lugares desertos por causa do desertor de vidas em 2020? Definitivamente ele vazou e para nosso alívio saiu à francesa, por isso não lamentei nem um pouco os impedimentos para que o “revellion” fosse comemorado com fogos e as desejadas festas.

PIERRÔ SAIU À FRANCESA

PIERRÔ SAIU À FRANCESA peça teatral de autoria de Luiz Carlos Saroldi, vencedora, em 2º lugar, do 1º Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlos Carvalho/1988.

E quem chegou? O ano de 2021 meio ressabiado, mas dilatando nossas esperanças sobre outro modo de viver em sociedade. Ele aparece com as posses dos prefeitos e vereadores eleitos e com especial destaque para as mulheres eleitas, dados do TSE: Foram eleitas, no ano de 2020 para assumir no primeiro dia do ano 2021, 651 prefeitas (12,1%), contra 4.750 prefeitos (87,9%). Já para as câmaras municipais, foram 9.196 vereadoras eleitas (16%), contra 48.265 vereadores (84%). Essa conquista, ainda tímida no Brasil, atinge na média 15% do parlamento pelo país. Resultado de esforços contínuos vide ELEITAS l Paridade: mais mulheres na política [https://youtu.be/_gA4Sm1a01Q ]. Sugiro que você assista ao vídeo, tá valendo em 2021. Então, o ano chega com o desejo de reconstrução por parte de quem tem consciência das perdas que tivemos, principalmente, em 2020 em diversos setores nacionais (Educação, direitos trabalhistas, terra na Amazônia, entre outros). Tenho orgulho de alguma forma ter colaborado para esse início esperançoso com o projeto Mulheres e Política: desafios e propostas, realizado pelos esforços do grupo de trabalho do Coletivo Mulheres Artistas (CMA) [https://youtu.be/PIqoDiZxFdc ] e com a campanha disparada em outubro Mulher vota em Mulher – representatividade concreta.

C:\Users\User\Pictures\CMA  mulher vota em mulher.jpg

Card da campanha do CMA, arte de Gabriela Lopes, coordenação Angeli Rose

Então, o ano já em curso adentra as agendas com a inaceitável tolerância com o preconceito, principalmente, o racismo. Aqui no Rio de Janeiro 2021 chega com o samba citado no discurso do novo prefeito em seu 3º mandato outorgado pelos representantes dos cariocas, “Conselho”, de Almir Guineto: “‘Deixe de lado esse baixo astral / Erga a cabeça enfrente o mal / Que agindo assim será vital / Para o seu coração’. Para o coração dos cariocas”. O outro, prefeito afastado, Marcelo Crivela, foi também igual a 2020 em seus 4 anos ,saiu sem se despedir porque foi despedido por nós cariocas que já não o suportávamos mais. Para os ingleses, aliás, 2021 é o ano 1 do Brexit, aquela exclusão do Reino Unido que ficará desunido em relação ao tratado com a  Comunidade Europeia. No Brasil, 58 pedidos de impeachment para o atual Presidente da República. Vamos cobrar o trabalho do presidente da câmara sobre tal assunto é tarefa para o novo ano. E chega o ano 21 do século XXI com o Papa Francisco adoentado com típico mal da “Torre”, problemas de coluna e nervo ciático, parecem exigir revisão de valores. Acho que ele também precisa rever alguns dentro de sua igreja. Mas o Angelus resiste para nosso bem. Chega o “novo” ano com Israel sendo o país que está imunizando mais rápido sua população de quase 10 milhões. Lembremos, temos aqui 220 milhões para dar conta.

 E aquela amiga estreante que anunciei no início desta crônica, a F., resolveu me convocar para acompanhá-la momentos antes da “virada” a fim de que 2021 surgisse depois de algumas simpatias realizadas. Ela me convenceu pela simpatia que é. 

O tom pareceu de pouca fé? Cara leitora, caro leitor, apenas é o cansaço sem ressaca e o riso que ficou frouxo diante da lembrança do chamado de minha amiga. E nisso só uma amiga querida é capaz de despertar os primeiros sorrisos no ano de 2021. Espero que você tenha também uma amiga, ou um amigo assim para lhe fazer rir ainda que na ausência dela ou dele. Aquela entende da “arte do encontro” que o poetinha, Vinicius de Moraes, sabia tão bem exaltar.

Cantora Anitta se apresenta em Nova York, na Times Square, momentos antes da virada do ano — Foto: Gary Hershorn / POOL / AFP

Cantora Anitta se apresenta em Nova York, na Times Square, momentos antes da virada do ano — Foto: Gary Hershorn / POOL / AFP(G1)

Enfim, talvez, as notícias ainda não sejam tão novas quanto desejássemos que fossem nos primeiros dias de 2021, parece haver um resto no tacho que não foi devidamente raspado. No entanto, nosso ânimo pode ser outro. E com diferente ânimo pode-se atuar de modo diferente, quem sabe, investindo nos primeiros meses do ano em ações e projetos que confiram ao segundo semestre de 2021 um PIB mais promissor; uma educação híbrida inclusiva; a permanência de que os livros são a nova aposta das editoras e dos consumidores e leitores no mercado de vendas de bens; que as relações com o novo governo EUA sejam mais adequadas; que alguns cantores sertanejos gritem menos ao cantarem; que os bailes funks armados sejam definitivamente combatidos como péssimo exemplo para os jovens das periferias brasileiras, dando outras opções culturais para eles; que nossos índios e índias sejam mais respeitados em seu modo de vida; e que a arte à luz do que resistiu no ano passado seja reconhecida como a droga, fármaco, capaz de tratar negacionistas, descrentes da espécie humana; machistas inveterados; e corruptos renitentes, principalmente. 

Assim, fica o convite para você, leitora, leitor, seguir a vida com a vontade de que ao final desse ano recém-chegado estejamos contando boas histórias com finais mais alegres e fraternos.

   Angeli Rose é escritora, colunista do JCB, professora, pesquisadora em Literatura Brasileira, Dra.h.c Multi em educação, Literatura e Belas Artes; Embaixadora da Paz (OMDDH); membro correspondente da AMBA, coordenadora do Coletivo Mulheres Artistas; é carioca, geminiana e pós-doutoranda em Letras(UFRJ),entre outras atividades desenvolvidas e títulos que possui. 

http://lattes.cnpq.br/4872899612204008

https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=217908 @nascimentocapitu    //  https://www.facebook.com/capitu33/

Curta,compartilhe e siga-nos:

2 Replies to “Vida que segue… Por Angeli Rose

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *