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Carta entre escritores: Palavra de barros – Por Angeli Rose

“Deus deu a forma e a gente desforma.” É isso mesmo o que a poesia faz. Ela “des-forma” as formas que só poeta intui que podem ser desfeitas, desconstruídas, para outras formas construir ou formar

Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB News – Belo Horizonte , em 06/02/2021 às 02hs19mins

Senhor Manoel,

Espero que esta carta o encontre gozando de plena criatividade numa nuvem branquinha, daquelas que lembram algodão doce. 

Estou a escrever-lhe por cisma da mulher que às vezes dorme dentro de mim.

Gostaria de lembrá-lo antes do dia em que nos falamos. Vez única. Foi o telefonema de um dos seus tradutores, o causador de tudo. Ele o fez para o senhor e pregou-me a peça de passar-me a ligação, ao que respondi com imensa vergonha e falta de palavras para cumprimentá-lo. Por nunca imaginar que um dia teria sua atenção, fiquei naquele momento, breve, mas um momento de longa duração para mim que já o admirava como leitora, sem saber o que dizer. 

Não sei como estava do seu lado, em sua fazenda, no entanto, eu o imaginava sentado numa cadeira com assento de palha, espaldar alto, próximo de uma mesa larga, grande, de madeira escura, mas com um paninho de crochê sobre o centro dela que deveria estar levando um enorme jarro de flores locais. E junto de si o telefone em que falava com aqueles que interrompiam suas meditações através da janela aberta, escancarada, sobre o descampado. Foi tudo muito rápido. Sei que lhe perguntei como passava, sobre sua saúde e aproveitei logo para manifestar a minha admiração.

-Sou sua leitora! Adoro o menino que peneirava água! (E o senhor Manoel que dava vida às palavras como se as soprasse no barro, tirava de cada costela mítica um ponto e um verso!). Não disse isso ao senhor nem poderia, engasgada que estava num misto de vaidade e perplexidade. O seu tradutor se ria de mim, parado a minha frente, 

Depois do primeiro susto, atônita, ouvi a sua pergunta sobre como eu estava, se passava bem e conhecia o Pantanal (?). Manoel de Barros, sábio poeta, querendo saber se eu passava bem? Foi às seis horas da tarde em ponto, o telefonema que o chamou, e o senhor prontamente atendeu. Não houve intermediário, ou outra voz para chamar e tirá-lo, quem sabe, de um afazer mais íntimo. Parecia esperar intuitivamente uma chamada distante.

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Manoel de Barros – Imagem: Revista Movimento

Às vezes reflito, caro poeta, sobre esses instantes que nos ocorrem e são de uma intensidade tão inesperada a ponto de se transformarem em extensas lembranças da nossa fantasia, a cada reconto. Muito próximo do que nos acontece quando lemos uma poesia – ainda mais se for sua –  que nos afeta como um despertador que toca para nos acordar de algum sonho, ou pesadelo até. É isso o que faz em sua obra. Quando escreveu a Sheila Hue – que inveja! – e ainda pediu desculpas à amiga. É possível. Não discuto. No entanto, ler um trecho dessa monta pode inspirar qualquer: “Inventei meus brinquedos e meu vocabulário. Quando eu não achava a palavra para nomear a coisa, eu modelava ela com as mãos”. E não satisfeito, o senhor ainda segue explicando seu processo criativo e um pouco do que lhe formou poeta: “Assim que é: o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.”

Pois estou aqui diante da carta destinada à mestranda de então, Sheila Moura Hue. Releio a pequena carta, mas fico mais atraída por olhar demoradamente para sua foto. Está nela sorrindo, descontraído, como se tivesse ouvindo uma boa história. Dessas histórias que nos fazem lembrar que a vida pode ser generosa conosco, ao menos um pouco. Não? E foi a carta de julho de 1995 que gerou o desejo de escrever-lhe esta. Como se eu me intrometesse na conversa de vocês dois para esticar a sua presença entre nós, suas leitoras. Ou seria já resultado do que o senhor disse a ela, à escritora amiga?

Caro poeta, o senhor escreveu que alimentava o seu espírito com “inventar”. E agora me pego com esse assanhamento querendo ser inventiva também. Isso pega? E simples ainda diz: “Deus deu a forma e a gente desforma.” É isso mesmo o que a poesia faz. Ela “des-forma” as formas que só poeta intui que podem ser desfeitas, desconstruídas, para outras formas construir ou formar. 

Despeço-me agora, porque me deu vontade de tomar o “Livro das Ignoranças”, antes de dormir, e ler alguns poemas dele. 

Poeta, obrigada por ter-nos deixado tantas “artices” e suas preferências como as de quem foi marcado pelos “gestos dos peixes, por entes que alçam tipo borboletas e bem-te-vis, por entes que rastejam tipo lesmas, lagarto.”

Espero que dessa nuvem fofa que o move entre os espíritos que o leem, o senhor esteja se divertindo com o que tentamos inventar depois de peneirar águas de experiências.

Um abraço carinhoso,

AR

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Sim, caro leitor, cara leitora, sei que na semana anterior havia lhes prometido voltar com notícias sobre minhas amigas, pois muitas novidades há. A vida anda. E anda rápido. Para não faltar com o compromisso, trouxe o poema que B. me ofertou certa vez, por ocasião do dias da amizade. Nunca mais esqueci o “mimo”. Fui aos meus alfarrábios – na pandemia é possível arrumar gavetas! Certamente, você já o conhece, mas ler e reler poesia nunca são demais ou enfadonhas iniciativas.  Em sinal de minha reverência e a propósito desta carta, deixo-os/as com o poema do poeta Manoel de Barros ( 1916- 2014),nascido no Mato Grosso, “Uma didática da invenção” :

I.

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso

saber:

a) Que o esplendor da manhã não se abre com

faca

b) O modo como as violetas preparam o dia

para morrer

c) Por que é que as borboletas de tarjas

vermelhas têm devoção por túmulos

d) Se o homem que toca de tarde sua existência

num fagote, tem salvação

e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega

mais ternura que um rio que flui entre 2

lagartos

f) Como pegar na voz de um peixe

g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.

etc.

etc.

etc.

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.”

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Angeli Rose é Ph.D. em Educação pela centenária UFRJ e Doutora em Letras (PUC-Rio), é pesquisadora, carioca da gema e geminiana. É ativista cultural agraciada com os títulos de “artilheira da cultura” (2016,Cetro Cultural do exército – Forte Copacabana/RJ); Embaixadora e Comendadora em Educação de Excelência e Qualidade (Braslíder).Além disso, é membro-fundador correspondente da ALB, da qual foi vice-presidente de honra (2019-2020). È membro de diversas academias de Letras e Artes e associações culturais (A.D.AB.L.;AJEB-RJ;CONCLAB/CONNINTER;FEBACLA;AMBA/ABARS;AVL;ALG;NALAP;Associação Cultive de Arte, Literatura e Solidariedade) Atualmente, dedica-se, principalmente, à coordenadoria do COLETIVO MULHERES ARTISTAS (CMA) e ao segundo pós-doutoramento (Letras/UFRJ) com pesquisa sobre o Rio de Janeiro dos anos 20 do século XX. Participou de antologias nacionais e internacionais de literatura brasileira. E essa carta a Manoel de Barros, Palavras de barros foi publicada no livro “Cartas entre escritores”, coletânea pelo selo “Cavalo café” da editora Porto de Lenha,2018.  

https://www.facebook.com/capitu33/

@nascimento capitu

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