“Nesse sentido, o Big Brother faz parte do conjunto maior “Big Data”. Sabe-se que todos os dados dos indivíduos são negociáveis. Os dados são “enumeráveis”, porém, não são “narráveis”
Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB News – Belo Horizonte em 13/02/2021 às 14hs15mins
Caro leitor, cara leitora, deveríamos ter direito ao esquecimento sim, só que em algumas mídias. Vejam, esses dias M. me sappeou pra dizer que estava “revoltada com a Karol Concá no BBB 21”. Exclamei “hein?!”. Eu estava exatamente no meio da (tre-)leitura de Metrópole à Beira-Mar. O Rio moderno dos anos 20, do Ruy Castro, também colunista da FSP, além de biógrafo, jornalista e escritor. Ela, M., continuou ansiosa, aflita e irritada fazendo uma breve explanação sobre o comportamento “absolutamente inadequado” da artista no programa. Confesso que comecei a ficar também irritada, mas com a amiga. Tentei conduzir a conversa para outro rumo, inutilmente. Ela insistia em sua indignação. Então, decidi comentar um pouco em tese sobre o programa Big Brother a partir de leituras que havia feito há uns anos. Em alguns momentos, propor uma visão analítica e mais racional sobre alguma situação pode ser um bom começo para o diálogo.
E iniciei a apresentar-lhe algumas considerações do filósofo sul-coreano, professor da universidade de Berlim, Byung- Chul Han [https://en.wikipedia.org/wiki/Byung-Chul _Han] em uma de suas dezesseis obras publicadas na linha da filosofia intercultural, mais precisamente Psicopolítica (2014). O autor comenta que o Big Brother, programa televisivo que acontece pelo mundo ocidental e no Brasil está no momento em sua 21ª edição é uma das iniciativas da sociedade neoliberal que transformou declaradamente as emoções em mercadoria midiatizada. O “como você se sente?” é a chave para compreender tanto os participantes, como a recepção daquele entretenimento por parte do público. E ,no entanto, é exatamente o que parece ser a moeda a ser ocultada entre os integrantes da casa do “Grande irmão”. Han esclarece sobre a emoção e o sentimento, em tradução livre do Espanhol para o Português : “O sentimento tem outra temporalidade diversa da emoção. Permite a duração. As emoções são essencialmente fugazes e mais breves que os sentimentos.”
[Byung-Chul Han na Revista Quatro cinco um: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/filosofia/ensaista-feroz]
Ao comentar calmamente tal aspecto sobre as emoções, baseada em Han, M. disparou: “- Agora entendi por que aquela equivocada da Karol é tão inconstante e ao mesmo tempo provoca tanta confusão na “casa”! Aff!”. Tentei dar continuidade ao raciocínio, insistindo para que a sensível e perspicaz amiga conhecesse um pouco mais sobre o pensamento revelador do filósofo Byung-Chul (um dos meus preferidos filósofos da atualidade!),mas era interrompida quase que a cada frase por algum comentário específico em torno do comportamento condenável da artista em questão, segundo minha interlocutora da hora. É nessas horas que devíamos ter o “direito ao esquecimento”. Pensem bem, é pela Internet, nos jornais, na televisão, no rádio, em fias, nas esquinas com grupinhos pequenos, no ônibus, enfim, sempre em alguma mídia, programa , local, ou coluna está a se comentar “ a casa mais vigiada do Brasil”, reproduzindo o bordão que a essa altura me parece ser bem verdadeiro. Embora eu não tenha muita clareza sobre o que vem primeiro : o bordão ou o programa(?).
Composição VIROLOGIA, Angeli Rose
Assim, dei vazão a minha paciência e reiniciei, como um computador que reinicia ante alguma interferência mais pontual : Não há uma emoção de quietude. Por outro lado, sim, se pode pensar em “sentimento de quietude”. E logo lhe atravessei antes que novamente me interrompesse. Como você vai esperar algo diferente num ambiente em que a “quietude” dá margem a se nomear um dos confinados como “planta”? M. não esperava que eu a interpelasse, ou, talvez, que eu soubesse um pouco mais sobre o reality show BBB21. Então, a partir desse momento M. permitiu que eu desenvolvesse mais meu pensamento que aplicava alguns dos conceitos levantados pelo filósofo Han.“A expressão “estado de emoção”, ou estado emocional, soa paradoxal”. E continua Han : “ A emoção é dinâmica, situacional e performativa. O capitalismo da emoção explora precisamente estas qualidades. O sentimento, pelo contrario não se deixa explorar por carece de performatividade (…)Ademais, no capitalismo do consumo vendem significados e emoções. Não o valor do uso, senão o valor emotivo(…). A essa altura, M. acalmara-se. Eu ,então, decidi não massacrá-la com as reflexões relevantes do filósofo. Todavia, ainda concluí: “O sentimento é constatativo. Por isso se diz “tenho o sentimento de que…”. Por outro lado, “(…) a emoção não é constatativa, senão performativa, Remete às ações. Ademais, é intencional e finalista.” Ora, como concordo com as provocações de Han, nada mais lógico do que considerar que as emoções parecem movimentar o reality show. Ele é movido a emoções, alimentado por elas, numa descontinuidade que cria a imprevisibilidade, dentro do previsível, aspecto responsável pelo acompanhamento do espectador. Aos participantes no BBB(21) cabe dinamizar o programa com suas emoções de forma transparente. Diferentemente do sentimento ,sem lugar naquele programa, pois este é “estático”, exige permanência e é “constelativo”. Ao lado disso, a contemplação ,mãe da reflexão mais profunda e transformadora e irmã do sentimento, não tem vez no BBB. Naquele jogo, a imediatez para escolhas e “jogadas” dos participantes determina e potencializa as possibilidades de continuar a fazer escolhas. É outro tipo de “inteligência”, ou seria habilidade?
Também nas situações em que a emoção é o principal combustível ,a objetividade faz-se presente incessantemente. A inconstância e a descontinuidade possibilitam um giro de emoções e de protagonismos, entre “vilões, vilãs” e “vítimas ou mocinhos/as”. Entre nós, que não mais cheguei a falar disso com M., mas tomo a liberdade de “falar” sobre isto com os leitores e as leitoras, fazendo nos acompanhar mais de Byung-Chul : “As emoções enquanto ‘inclinações’, representam o fundamento energético, até mesmo sensível à ação. Estão reguladas pelo sistema límbico, que também é a sede dos impulsos.(…) Assim, a emoção representa um meio muito eficiente para o controle psicopolítico do indivíduo”. Agora, ao sair da “casa”, fazendo as câmeras girarem para nós aqui fora, os confinados pela pandemia e prisioneiros do consumismo, há que se encontrar alguns, senão todos, esses aspectos na vida acelerada do cotidiano. Não acham?
Como acabou o diálogo com M.? Ela percebeu o exagero em que estava mergulhando, ao dar a importância que estava dando à “Dona Confusão”, Karol Conká. E entendeu que estava criando expectativas em relação ao jogo que jamais seriam contempladas. E isso não diminui em nada a importância de enxergar no jogo do BBB21,por exemplo, algum tipo de contribuição para reflexões mais interessantes sobre nossa realidade brasileira, por exemplo, pra além da catarse feita a cada dia. Todas as considerações de Han, ajudam-nos a pensar os demais ambientes que frequentamos(frequentávamos) e as relações advindas deles. Talvez, você tenha alguns “insights” sobre a perda de um emprego; ou o “cancelamento” de uma amizade, ou , quem sabe, até entenda como a pandemia deu continuidade ao sistema capitalista vigente através da expansão do Big Data. Em tempos de “bigs”, o que Han nos alerta é para o “dataísmo” em que estamos mergulhados. Vide a notícia mais recente, em janeiro/2021, sobre “megavazamento de dados de 223 milhões de brasileiros”. Dados sobre : fotos de rosto, endereços, CPFs, participações societárias, no. de celular, nível social, sexo, idade, escolaridade, imposto de renda, INSS. Estamos todos/as expostos aos jogadores na função “golpistas”.
Nesse sentido, o Big Brother faz parte do conjunto maior “Big Data”. Sabe-se que todos os dados dos indivíduos são negociáveis. Os dados são “enumeráveis”, porém, não são “narráveis”. Pois com tais dados é possível criar histórias para os indivíduos, de maneira que as histórias próprias sejam esquecidas, desconsideradas, em nome das histórias que as empresas querem para os indivíduos ,ou os golpistas queiram que impor aos cidadãos. No “dataísmo”, os indivíduos não são cidadãos, são um conjunto de dados enumeráveis a despeito das histórias de vidas em cursos. A narração, motor da humanidade historicamente, é suprimida. No “Big data” conta a enumeração e não, a narração. Seria a pobreza da experiência? Como quis pensar a História escovando-a a contrapelo o também filósofo Walter Benjamin?
No entanto, talvez seja a hora de ir além da transparência do Big Brother, mas chegar ao ponto de pensar sobre o quanto o “dataísmo” com que estamos lidando mapeia a nossa vida sem dar vida às vidas escrutinadas pelos dados vazados. Esse maior vazamento de todos os tempos noticiado ,pasmem, foi criado em grande parte através do “Cadastro Positivo”. Lembram-se dele? Ele foi criado por lei em 2018,tornando-se uma base de dados oficial de todos os brasileiros e de grande valor. Como ser “esquecido” na rede Internet depois dele? Aí o “direito ao esquecimento” seria fundamental ,Não acham?
Nossas interações são feitas a partir de relatos, as interações significativas, e assim constituem uma memória viva com “diferentes níveis de tempo” que se interferem. Mas se os relatos estão suprimidos do “Big Data”, por onde fazer a nossa história. A autobiografia, por exemplo, é uma memória viva, um relato advindo de recordações.
O que pode vir a acontecer a alguns participantes do BBB21 é saírem da temporada com o forte desejo de serem esquecidos, paradoxalmente àquilo que mais buscam ali naquela vivência cotidiana de isolamento, a visibilidade que dê notoriedade. Lembram-se do Presidente Figueiredo? “Peço ao povo que me esqueça!”. O que seria de nós se a “lei do esquecimento” fosse aplicada a casos assim? Como a história do país seria construída ou resgatada? Curiosamente, esses dias tivemos a notícia de um cidadão em Minas Gerais que simplesmente não contou à mulher que fora preso e não cumprira a pena na prisão. A mulher descobriu que ele usava identidade falsa. Esse se aplicou a “lei do esquecimento”. E ainda decidiu pela companheira que ela deveria aceitá-lo na nova história de vida, porque o passado dele o condenava, literalmente. Então, ele foi e decidiu que “não se fala mais nisso”. Imagina você feliz porque arranjou um companheiro, casa, e depois descobre que até homicídio ele cometeu?!?
Enfim, M. seguiu seu dia e acho que se desapegou um pouco do BBB21 depois de nossa conversa, apesar de Karol Conká continuar entre os assuntos mais comentados ,já que a sua vida aqui fora está passando pelo inferno astral e material, com contratos cancelados, etc. Não posso me furtar a deixar como provocação a sacação- mor de Byung-Chul Han : o “Big data”, ou melhor, o “dataísmo”, como ele conceitua, criou a sociedade de classes digital.
E nós, cidadãos brasileiros e cidadãs brasileiras? Será que num futuro próximo vamos pedir para nos esquecerem em função dos desdobramentos possíveis que vierem do “megavazamento de dados” ocorrido em Janeiro passado?
Até a próxima! E bom “Não-carnaval”!
Angeli Rose, colunista aos sábados no JCB, é Ph.D. em Educação pela centenária UFRJ e Doutora em Letras (PUC-Rio), é pesquisadora, carioca da gema e geminiana. É ativista cultural agraciada com os títulos de “artilheira da cultura” (2016,Cetro Cultural do exército – Forte Copacabana/RJ); Embaixadora e Comendadora em Educação de Excelência e Qualidade (Braslíder).Além disso, é membro de diversas academias de Letras e Artes e associações culturais (A.D.AB.L.;AJEB-RJ;CONCLAB/CONNINTER;FEBACLA;AMBA/ABARS;AVL;ALG;NALAP;ABARS;Associação Cultive de Arte, Literatura e Solidariedade). Atualmente, dedica-se à coordenadoria do COLETIVO MULHERES ARTISTAS (CMA) e ao segundo pós-doutoramento (Letras/UFRJ) com pesquisa sobre o Rio de Janeiro dos anos 20 do século XX. Participou de antologias nacionais e internacionais de literatura brasileira. É autora, entre outros, de BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA DE UMA MULHER PANCADA (2018). https://www.facebook.com/capitu33/
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