“É provável que essa tenha sido minha maneira de reagir à inveja, ao ódio, e de sufocá-los“
Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB News – Belo Horizonte em 20/02/2021 ás 01hs43mins
Cresci ouvindo as fofocas de rádio sobre Emilinha Borba e Marlene. De repente, você nem sabe quem são! É… a cultura que vem formando as últimas gerações das classes populares já não passa tanto pelo rádio e, certamente, é constituída de gêneros musicais bem diferentes daqueles cantados por essas duas cantoras. Mas é possível que num salto no tempo e nas plataformas digitais o leitor e a leitora tenham ouvido falar de Ludmila e Anitta. Esta última, tão jovem, já conseguiu a façanha de participar do show do último réveillon de Nova York! (Um “Plus” em sua carreira com vistas ao circuito internacional). E também já esteve envolvida com um bocado de “tretas” no mundo dos famosos.
REVISTA MANCHETE Nº 2304. Editada em 01 de Junho de 1996. Editora BLOCH.(Acervo particular)
Em outro momento da história recente das contendas vividas por artistas – foco aqui somente em mulheres – tentaram criar um “climão” entre Claudia Leite e Ivete Sangalo, o que a live desse Carnaval enterrou de vez ao apresentar em O Trio: Ivete, Claudia e você. Não viu? Perdeu, mas ainda dá tempo de curtir o “#carnavalemcasa” [ https://youtu.be/CimAjxzvQzM].
Com todo respeito a você, que é intelectual e não gosta dessa fanfarra popular, embora entenda muito das origens e dos percursos da festa à brasileira e de todo o processo de “carnavalização” tão bem comentado por Roberto da Matta, por exemplo, em Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro, do campo do saber antropológico. Entretanto, para mim é difícil resistir ao chamado de “Veveta” quando esta dá o seu grito de “guerra”. Grito que está mais para chamado de paz do que qualquer outra possibilidade bélica. Medito: é “guerra” também, porque é um gesto de convocação à resistência ante todo discurso hegemônico contra a cultura, a alegria popular e a saúde mental desse mesmo povo massacrado pela corrupção e a pandemia. Aliás, sem abandonar Da Matta, destaco que o capítulo do seu livro citado, “A CASA E A RUA” ,mereceria receber um olhar diferenciado hoje, tendo em vista que a bem colocada distinção desses espaços foi desafiada pela ideia de #carnavalemcasa e virtual em 2021, também sem desprezar as escandalosas transgressões às normas de proteção à crise sanitária que atravessamos, noticiadas pelo “país do carnaval” de agora. A certa altura, Roberto da Matta sistematiza as ideias desenvolvidas ao observar: “É evidente que a oposição rua/casa separa dois domínios ou universos sociais mutuamente exclusivos que podem ser ordenados de forma complexa, pois se organizam tantona forma de uma oposição binária quanto em graduações (num continum)”. O autor recorre em seu estudo a Jorge Amado, ao primeiro romance, O país do carnaval (1931). Nele, a história de um personagem que não se identifica com o país (Paulo Rigger) apresenta aos leitores/as inúmeros temas que são ainda preocupações do tempo em que vivemos: mestiçagem; racismo, cultura popular, atuação política, religião e filosofia. Vale relembrar: “E Paulo Rigger tinha desejos de ir bem para o interior, para o Pará e para Mato Grosso, a sentir de perto a alma desse povo que, afinal, era seu povo. O seu povo… Não, o seu povo não era aquele. Toda a sua formação francesa bradava-lhe que o seu povo estava na Europa”. Talvez tenhamos em nossos dias atuais uma complexidade mais aflorada, não tanto pelos espaços físicos que delimitam os territórios (doméstico/social), mas pelo fator de virtualidade que introduziu uma liquidez aos desejos e gestos na transitiva festa popular. Surge a curiosidade: Como você “brincou” o carnaval? Onde foi parar o caráter lúdico e transgressivo do mascarado na tela de cristal?
https://blogs.operamundi.uol.com.br/agora/reflexoes-sobre-o-pais-do-carnaval-de-jorge-amado/
Ao lado dessas provocações é possível que você conheça também Problemas da poética de Dostoiévski, com a edição do exímio tradutor do Russo para o português, o professor Paulo Bezerra (UFF). Nesse livro, Michael Bakhtin, num viés linguístico, discorre sobre o processo de “carnavalização”. Cabe observar que o linguista também foi uma das referências utilizadas por Da Matta, porém, a partir do estudo aprofundado do conceito no processo de “carnavalização literária” em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto da obra de François Rabelais. (O romance de Sergio Sant’Anna, Confissões de Ralfo: uma autobiografia imaginária (1995) é um bom exemplo para tanto, além de ser uma boa leitura.).
No entanto, não vim aqui para comentar nessa crônica exclusivamente o Carnaval de 2021 ou o processo de “carnavalização” como um dado relevante para a compreensão da cultura brasileira. Tudo isso foi um “abre-alas”, ou, quem sabe, uma justificativa para discorrer sobre amizades, parcerias e “tretas” entre mulheres no contexto contemporâneo, em que a solidariedade e a sororidade são princípios que clamam por serem postos em prática no dia a dia, em prol da democracia e da união de mulheres numa luta por algo maior.
Pra você entender um pouco mais sobre a escolha do título dessa crônica, que cumpre ser sempre um convite à leitura de um texto, o Carnaval, do jeito que ele aconteceu (estranho para mim) trouxe reflexões sobre as amigas, até porque elas me telefonaram e durante o “feriado” me vi às voltas com algumas situações curiosas.
K. telefonou-me um dos dias e comentou estar cansada de tanta restrição, referindo-se à pandemia em curso. Disse-me: “- Esperei tanto o ano novo, pus esperança nele, e olha a gente em fevereiro ainda #emcasa, com o terror da nova versão do Corona vírus!” Lamentei ,consolei a querida e dei razão a sua frustração. Ponderei que tínhamos mais tempo para nossos afazeres, aprimoramentos, etc. E ela um pouco exaltada disparou: “ – Estou farta de me aprimorar! A vida nem exige tanto de nós assim! Não aguento mais receber informe, por tudo quanto é canal, de cursos para fazer. Esses dias, recebi uma propaganda sobre um curso em que o tema era “como fazer cursos para manter-se no mercado”! Ora, fazer curso sobre curso? É cada uma…”. Encerrou o diálogo com um muxoxo. Eu tive de concordar com ela.Outra manhã, da terça gorda de carnaval, L. me perguntou pelo whatsapp se poderia telefonar, pois se sentia sozinha e desanimada. Estava “deprê”. Adorei a companhia. Deixa estar que tinha acabado de tomar um lauto café que preparara para mim, mesmo sozinha em casa. Tenho dessas manias, gosto de colocar a mesa de refeições como se estivesse a receber alguém. Caro leitor, cara leitora, digam-me : Não é bom a gente se receber? Sentir-se em casa de corpo, alma e mente? Se acolher nesses tempos de distanciamento prolongado? Nada melhor do que ser anfitriã de si mesma e tomar-se de certa gentileza consigo mesma. Uma delicadeza que o acelerado cotidiano, por vezes, rouba sem deixar vestígios de como resgatar a tranquilidade e harmonia internas. Cometo agora o atrevimento de registrar um poemeto de minha autoria que foi publicado na página “Poesia no Muro” no Facebook, há alguns anos:
[https://www.facebook.com/PoesiasNoMuro/photos/a.244327542400247/735677526598577 ]
Então, L. é meio perfeiccionista, doença da alma grave, segundo algumas correntes filosóficas . E, geralmente, liga para reclamar de alguém que não fez algo com rigor. A irmã é alvo dos queixumes variados. Dessa vez, L. contou-me que W. tinha deixado um bilhete mal escrito na porta da geladeira, avisando sobre uma saída repentina e sei lá mais o quê. Não me recordo agora. Era um bilhete, mas para L. era a expressão da língua portuguesa, e como tal deveria ser cuidada e tralálá. Desculpem-me. Adoro L. como a todas minhas amigas, mas na segunda frase eu já não a estava escutando com devoção. E ela continuava em sua tese de edificação da língua de todos nós, falada por 280 milhões aproximadamente no mundo. Fazer o quê? Tinha razão e não. Recordo o mestre Machado de Assis, que no legado magnifico deixado para a Literatura e a cultura brasileira, escreveu com sua veia irônica que todo mundo tem sempre alguma razão. – não é literal, desculpem. Acredito que a irmã de L., W., também a tivesse, ao menos um pouco, para (des) elaborar tal mensagem.
(Os fatores que nos levam a uma ou outra expressão linguística não decorrem somente da intenção de “fala”. Sabemos que o contexto, os meios de que dispomos, o destinatário, o estado emocional, o repertório vocabular, enfim, vários elementos e fatores interferem na escolha do modo e das palavras que usaremos para nos comunicarmos com o Outro).
Foi quando me abati por instantes. Compreendi que para ela, L., era muito difícil colocar-se no lugar do outro, ou compreender um contexto de pressa, acelerado, ”descolado”. Era pedir muito de sua estabilidade cognitiva, adquirida à custa de muita contemplação leitora aceitar a displicência com a língua materna. Entendi igualmente que pertencer a um grupo, fazer coisas coletivamente é muito difícil, seja esse grupo social a família, um clube de leitura, ou uma equipe de trabalho com viés participativo. Em realidade, eu enxergava certo cansaço em L. Um cansaço de uma vida previsível, dedicada ao aprimoramento de si e de outros. Uma vida que agora parecia estar virada de cabeça pra baixo, não só pela pandemia, mas também pelo modo de vida tão diferente que invadia a sua porta nesse cotidiano intensamente virtualizado, ainda que não o nomeasse com toda convicção. O modo abrupto com o qual se viu sendo preterida pelo cotidiano nada romântico, suprimia- lhe o processo das descobertas, dos indícios, dos símbolos legendados. L. tornara-se uma pessoa intolerante, embora sempre elegante e gentil conosco.
Ao me refazer da dura verdade existencial que aquele episódio aproximara de mim, penetrando nos poros mais sensíveis, de imediato, mas não repentinamente, lembrei-me do livro de Elena Ferrante. Você ainda não a conhece? Novo desvio e já, já, lhe apresento o universo de Elena.
Elena Ferrante pra começar é o pseudônimo de uma escritora que não se mostra publicamente. Não é dada a entrevistas, que acontecem mediadas por sua assessoria e agentes editoriais (sonho de toda escritora, não?). Muito se especulou sobre a autora, a ponto de haver suspeitas sobre o fato de tratar-se ou não de uma mulher. Alguns jornalistas e críticos chegaram a suspeitar de ser um homem e não uma mulher. Outros apostam na tradutora Anita Raja, esposa do também escritor italiano Domenico Starnone. Sem dar “spoiler alert”, adianto que seu livro, o primeiro da tetralogia napolitana, A amiga Genial, é dividido em 2 partes, uma é a infância das personagens e a segunda, a adolescência das duas amigas (Lenu e Lila). É narrado em 1ª. pessoa e traz à tona sentimentos contraditórios, muitos não são considerados nobres socialmente até, porém, são acima de tudo humanos e narrados com uma linguagem fluida , preservada na tradução para o Português. A amizade, a diferença de orientações familiares e sociais, a periferia, a desigualdade social são alguns dos temas dos livro, ambientado nos anos 50 do século XX. Faço questão de trazer para a cena a voz de uma das personagens de A amiga genial , Lenu: “É provável que essa tenha sido minha maneira de reagir à inveja, ao ódio, e de sufocá-los. Ou talvez tenha disfarçado assim o sentimento de subalternidade, o fascínio que experimentava. Com certeza me adestrei em aceitar de bom grado a superioridade de Lila em tudo, inclusive seus abusos.”
Este resgate em minha memória salvou-me de qualquer impaciência em relação às amigas, possibilitou recuperar a anfitriã de mim e delas. Concedeu-me a harmonia interna necessária para lidar com os sentimentos e as percepções mais difíceis de serem admitidas em si próprio. Alertou-me mais de uma vez, em meus fluidos pensamentos, para o fato de que não há a “amiga ideal”, mas algumas geniais que nos escolhem, acolhem e colhem dos momentos de solidão e enganos. E ainda que as correntes sociais de cunho machista, principalmente, invistam em contendas, tretas e discordâncias entre mulheres, celebridades ou não, prefiro pensar que minhas amigas são todas geniais e que eu sou fã delas!
Angeli Rose é professora há mais de 25 anos, colunista do JCB (digital), pesquisadora e atualmente dedica-se ao seu segundo pós-doutoramento, agora em Letras na centenária UFRJ, e também a coordenar o COLETIVO MULHERES ARTISTAS [ https://www.facebook.com/groups/356938358657004 ] , um coletivo cultural idealizado um pouco antes da pandemia. É membro de diversas academias, associações de Letras, Artes e Ciências (AJEB;CONCLAB/CONNINTER; AVL entre outras); coautora de várias antologias nacionais e internacionais do cenário lusófono. É autora de dois e-books acadêmicos, resultantes de suas pesquisas, pela editora Atena; e do infanto-juvenil impresso “Biografia não autorizada de uma mulher pancada”. É “Embaixadora da Paz” nomeada pela Literarte e pela OMDDH, signatária da ONU. Redes sociais: https://www.facebook.com/capitu33/http://lattes.cnpq.br/4872899612204008