“Não há comida, nem medicamentos, não há liberdade. Não nos deixam viver”, afirmou à BBC um manifestante no domingo.
Jornal Clarín Brasil JCB News – 13/07/2021
Depois de, no fim de semana, milhares de cubanos terem saído à rua em protesto contra o Governo, a maior crise econômica das últimas décadas e a gestão da pandemia da Covid-19, a crise política instalou-se.
Os dirigentes cubanos acusam os Estados Unidos de estarem apoiando as manifestações sem precedentes no país, tendo reforçado a presença policial nas ruas, bloqueado o acesso à Internet e detido mais de uma centena de manifestantes, incluindo o ativista Guillermo Fariñas.
Gritando palavras de ordem como “Pátria e vida”, “Abaixo a ditadura” e “Nós não temos medo”, milhares de manifestantes, na sua maioria jovens, desfilaram nas ruas de várias cidades cubanas, neste último domingo, em protesto anti-governo.
Desde a década de 1990 que Cuba não assistia a manifestações como as do fim de semana passado, que foi impulsionada pela grave crise econômica que o país vive somada à escassez de alimentos e medicamentos, e à crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19.
Além da capital, Havana, outras cidades como San Antonio de los Baños e Palma Soriano, foram palco das grandes manifestações, que se repetiram na segunda-feira. De acordo com a imprensa internacional, houve violência policial e várias detenções durante os protestos, que foram transmitidos ao vivo em várias contas nas redes sociais.
As imagens, os vídeos e as notícias sobre os protestos espalharam-se rapidamente nos vários canais de mídias e, segundo a Al Jazeera, geraram mais manifestações em outras regiões do país.
Desde o início da pandemia, o país, que já vem sofrendo há décadas por falta de condições básicas de sobrevivência, enfrenta maior escassez de alimentos, medicamentos e outros produtos de urgência primária, o que tem gerado forte mal-estar social. Os protestos aconteceram, aliás, no momento em que as autoridades de saúde cubanas registram novos recordes diários de infeções por Covid-19.
“Não há comida, nem medicamentos, não há liberdade. Não nos deixam viver”, afirmou à BBC um manifestante no domingo.
Mas os dirigentes cubanos não tardaram a reagir aos protestos, tendo o presidente exortado os seus apoiadores a estarem prontos para o “combate”. Num discurso televisivo especial, Miguel Díaz-Canel afirmou: “A ordem de combate está dada, os revolucionários às ruas”.
“Convocamos todos os revolucionários do país, todos os comunistas, a tomarem as ruas”, apelou o presidente.
Em resposta às manifestações pacíficas, as autoridades e vários apoiadores do Governo interceptaram os manifestantes, tendo-se registrado violentos confrontos e detenções. Além disso, a Internet foi restringida desde a madrugada de segunda-feira e o acesso à maioria das redes sociais bloqueado.
“Não temos medo. Queremos mudança, não queremos mais ditadura”, disse outro manifestante não identificado em San Antonio.
Bloquear Internet como forma de repressão
Cuba amanheceu na segunda-feira sem Internet móvel e com uma forte presença policial nas ruas de Havana, um dia após milhares de cubanos saírem às ruas num protesto sem precedentes.
Uma “calma tensa” é como a jornalista da agência de notícias espanhola EFE classifica o ambiente em Cuba, depois das manifestações anti-governo. Mas sem Internet na ilha, a jornalista diz ser difícil “saber ao certo” o que se passa em todo o país, sendo que até meio da tarde não havia relatos nem divulgação de novas manifestações.
“Vimos como a campanha contra Cuba estava a aumentar nas redes sociais nas últimas semanas”, disse Díaz-Canel na segunda-feira. “É assim que se faz: tenta criar-se inconformidade e insatisfação manipulando emoções e sentimentos”.
Nas horas anteriores ao corte dos serviços de comunicações por Internet móvel, tinham-se multiplicado nas redes sociais as denúncias sobre repressão e violência policial sobre os manifestantes deste fim de semana.
Restringir o acesso à Internet tem se tornado, aliás, um método para abafar a dissidência de regimes autoritários em todo o mundo, ao lado de campanhas e propaganda de desinformação apoiadas pelos governo – por exemplo, governos como a China e a Coreia do Norte exercem um controlo rígido sobre o que os cidadãos comuns podem acessar online.
As autoridades cubanas bloquearam o Facebook, o WhatsApp, o Instagram e o Telegram, disse ao Independent o diretor do Netblocks, Alp Toker.
“Esta parece ser uma resposta ao protesto alimentado pelas redes sociais”, disse.
Segundo Toker, a censura está a aumentar em Cuba: restringir a Internet não bloqueia apenas “as vozes externas”, mas também silencia “a voz interna da população que se queria manifestar”.
O acesso à Internet em Cuba é caro e relativamente raro, segundo grupos de direitos humanos. O Governo cubano restringe os media independentes em Cuba e “bloqueia rotineiramente o acesso dentro de Cuba a muitos sites de notícias e blogs”, segundo a Human Rights Watch.
Os recentes protestos foram “absoluta e definitivamente alimentados pelo maior acesso à Internet e a smartphones em Cuba“, explicou Sebastian Arcos, diretor associado do Instituto de Investigação Cubana da Universidade Internacional da Flórida.
“Uma das frases que os manifestantes têm usado agora em Cuba é ‘estamos conectados'”, continuou, acrescentando que, com esta expressão, o povo cubano pretende mostrar que não está apenas conectado através da Internet, mesmo quando o Governo tenta restringir o acesso, mas que também está “ligado como uma massa humana” que se manifesta contra a Governo e grita por “liberdade”.
Detenções e violência policial
De forma a intercetar os protestos pacíficos que começaram no domingo, agentes à paisana, polícias e forças especiais do Ministério do Interior (MININT) têm confrontado os cidadãos com o uso de armas, cães e brigadas de resposta rápida, informa a imprensa local.
Até ao momento, as autoridades não divulgaram ainda um número oficial de detenções, mas existe uma lista provisória elaborada por ativistas locais que conta já com mais de uma centena de nomes. Entre os detidos há personalidades conhecidas como o artista Luis Manuel Otero Alcántara, o dissidente moderado Manuel Cuesta Morúa ou o dramaturgo Yunior García Aguilera.
Na segunda-feira à noite, Guillermo Fariñas, jornalista, escritor e dissidente cubano foi também detido, pouco tempo depois de falar com a RTP e a Antena 1. A informação foi chegou à RTP por Alicia Hernández, mãe de Fariñas.
Segundo Alicia Hernández, o dissidente cubano foi levado pela polícia quando saiu de casa. As autoridades não informaram pormenores sobre a detenção.
A imprensa internacional revela ainda relatos de mulheres que denunciaram que os maridos, os filhos e os sogros foram espancados antes de desaparecerem. Segundo a BBC, até um fotógrafo da Associated Press foi agredido num confronto com as forças de segurança, enquanto trabalhava e reportava as imagens das manifestações.
Em Havana, os confrontos entre os manifestantes e os ‘pró-Governo’ aconteceram no Parque da Fraternidade, em frente ao Capitólio, onde chegaram a juntar-se mais de mil pessoas, com uma forte presença das forças militares e policiais, que fizeram várias detenções.
No entanto, um grupo de várias centenas de manifestantes conseguiu romper o cordão policial, na direção do Malecón, com os braços no ar e a gritar palavras como “liberdade”, “pátria e vida” e “ditadores”, em referência aos dirigentes do país.
Grupos organizados de apoiantes do Governo também estiveram no local, entoando “Eu sou Fidel” ou “Canel, amigo, o povo está contigo”.Comunidade internacional apela à “liberdade e paz”
A União Europeia já apelou às autoridades cubanas para autorizarem as manifestações e “escutarem” o descontentamento da população, na sequência das manifestações históricas em toda a ilha.
“Apoiamos o direito das pessoas se exprimirem de forma pacífica e pedimos às autoridades que autorizem essas manifestações e ouçam a insatisfação dos manifestantes”, declarou o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, após um encontro de ministros dos Negócios Estrangeiros europeus em Bruxelas, na segunda-feira.
“Discuti com os colegas as notícias que chegavam de Cuba. Pelo que sabemos, houve manifestações importantes num número significativo de cidades para protestar contra a falta de medicamentos, a propagação da covid-19 e também protestos contra o regime”, disse, destacando que se trata de uma “manifestação de descontentamento que atingiu uma dimensão que não se conhecia desde 1994”.
Também a ONU já reagiu aos aconteimentos e garante estar acompanhando o desenrolar dos protestos em Cuba, tendo destacado a necessidade de as autoridades respeitarem integralmente a liberdade de expressão e de reunião dos cidadãos.
“Estamos acompanhando o que acontece e (…) assegurarmo-nos de que os direitos básicos das pessoas, especialmente a liberdade de expressão e a liberdade de reunião pacífica, serão respeitados”, disse o porta-voz da ONU Farhan Haq, quando interrogado sobre a situação em Cuba, durante uma conferência de imprensa.
Haq destacou que, perante as manifestações de domingo em Cuba, as Nações Unidas mantêm a sua “posição de princípio” sobre a importância de respeitar essas liberdades fundamentais.
Questionado sobre as alegadas agressões sofridas por jornalistas, incluindo um repórter fotográfico de uma agência noticiosa internacional, o porta-voz do secretário-geral da ONU, António Guterres, sublinhou que “em qualquer parte do mundo a imprensa deve ter liberdade para fazer o seu trabalho sem perseguições e sem violência ou ameaças de violência”.
O presidente cubano, recorde-se, tem acusado os Estados Unidos de terem contribuído para o agravamento da crise econômica, com a imposição de sanções a Cuba, e de agora ter apoiado e incitado a população a manifestar-se contra a o regime.
Contudo, o Presidente dos EUA, Joe Biden, apelou na segunda-feira ao regime cubano para “ouvir o povo e responder às suas necessidades”, considerando que os protestos em Cuba constituem um “valente exercício de direitos fundamentais”.
“O povo está exercendo, com valentia, os direitos fundamentais e universais. […] Estamos ao lado do povo cubano e do seu vibrante apelo para a liberdade e para ser libertado das dramáticas garras da pandemia e das décadas de repressão e sofrimento económico impostas pelo regime autoritário” de Cuba, declarou Biden um comunicado divulgado pela Casa Branca e relacionado com as históricas manifestações contra o regime que estão ocorrendo em Cuba.
“Os Estados Unidos apelam ao regime cubano para, em vez de enriquecer, ouvir o seu povo e a responder às suas necessidades neste momento crucial”, afirmou Biden.
Estes são já considerados os maiores protestos anti governamentais de que há registo em Cuba desde o chamado “maleconazo”, quando em agosto de 1994, em pleno “período especial”, centenas de pessoas saíram às ruas de Havana e não se retiraram até à chegada do então líder cubano Fidel Castro.
Fonte: RTP – Portugal