Num país como o nosso em que a desigualdade social é aguda, em que muitos
jovens são “nem-nem”, nem estudam, nem trabalham, o que infantiliza
qualquer cidadania, já que apequena o valor social do grupo desocupado
Jornal Clarín Brasil JCB News – Brasil 01/04/23
Que futuro será vivido por nossas meninas? – Por Angeli Rose
“Olha as minhas meninas
As minhas meninas
Pra onde é que elas vão”
(As minhas meninas, Chico Buarque)
Qual pai ou mãe que não se pergunta pelo futuro de seus filhos?Geralmente,
quando são mais jovens, crianças ou adolescentes, num daqueles momentos
em que se está a contemplar a beleza da vida que pulula pelas descobertas ou
traquinagens dos pimpolhos.
“ – Como será que essa menina(ou esse garoto) vai se virar por esse mundão
ante tantos desafios?” E com os olhos querendo marejar,numa pujante
percepção em forma de piscada de olhos que a vida dá para o mais velho
sentado a olhar e olhar sem fim para a alegria que pulsa em cada jovem
adulta,percebe que a resposta do tempo é evasiva.
Para Chico Buarque, ”As minhas meninas”,isto é ,as dele saem sozinhas e se
confundem com as notas de suas canções.Saem de suas mãos porque são
escritas ou tocadas ao piano “As Minhas meninas”. Ou ainda, quando conta-
nos que lá se “vão as minhas meninas /levando destinos (…)”. Para onde irão?
Somos incapazes de saber os destinos de que irão dispor, seus pais, ávidos
por antever os “ destinos levados”. Também é difícil para um autor saber que
caminho sua obra percorrerá, uma vez lançada no cenário cultural.
[https://www.vagalume.com.br/chico-buarque/as-minhas-meninas.html ]
A canção de Chico Buarque foi composta sob encomenda para a peça “ As 4
meninas” de Lenita Ploncynscki, a pedido de sua filha Silvia(atriz). “As minhas
meninas” (1986),segundo depoimento do próprio autor falam de ciúme e
possessividade.É possível encontrar mais referências em Wagner Homem,
Livro de histórias de canções – Chico Buarque(Leya,2009).
(Tive a oportunidade de ser professora da menina mais nova de Chico Buarque
há muitos anos no Centro Educacional Anísio Teixeira (CEAT), no bairro de
Santa Teresa do Rio de Janeiro. Na época era uma escola única no Brasil, uma
experiência singular, sendo uma escola gerida por trabalhadores, sem que
estes fossem proprietários da escola. Foram doze anos de muito aprendizado,o
qual levei para minha pesquisa sobre formação de leitores jovens. Hoje em
livro e e-book : Reflexões sobre experiência de leituras e algumas contribuições
do mito de Don Juan)
Mas voltando às “meninas”,elas, “são meninas,”minhas meninas na minha
ilusão”.
Entre o afeto e o estético, o eu – lírico manifesta certa ambivalência quanto à
liberdade das “meninas” no mundo, levando seus destinos “iluminadas de sim”
e ao mesmo tempo “embaraçando” um pai/autor/criador das mesmas que se vê
“dono” e espectador das vidas das meninas, das suas meninas:
“Vão as minhas meninas/levando destinos/tão iluminados de sim/passam por mim/E embaraçam as linhas/da minha mão”.
A possessividade espelhada através dos usos e abusos do pronome possessivo é atenuada pela relação de semelhança entre as notas das canções e as meninas, pois em ambos os casos, as “meninas” teriam a mesma autoria. Na história de Chico Buarque,sabemos, foram 3(Helena,Silvia e Luisa).
Entretanto, ao lado da possessividade e do ciúme está a percepção de que nada adianta ser assim, porque as “meninas” vão desgarrando das mãos,como as notas das canções,ainda que o seu criador,Chico Buarque, confesse em versos de pura intimidade com seus sentimentos:
As minhas não/ As meninas são minhas/ Só minhas/As minhas meninas/ Do meu coração.
Essa semana tivemos o episódio das “meninas”, colegas de faculdade do curso de Biomedicina, amplamente veiculado pela mídia,televisiva, radiofônica e digital,que “zoaram” de outra colega,porque ela tinha 40 anos. O fato chocou a muita gente.
O caso “viralizou”,ganhando visibilidade em escala digital. A vítima e alvo do escárnio, Patrícia Linhares, de São Paulo, foi convocada a se posicionar e as agressoras saíram de cena e do curso que realizavam em Bauru. Depois de chorar muito e ser constrangida, Patrícia falou à imprensa.
Grosso modo, apresentado o episódio de “Etarismo”, temos um caso em que talvez “as meninas” de alguns pais não tenham atendido o chamado de um destino de liberdade, porque, ao criticarem a liberdade de outra mulher em idade adulta por estar cursando uma graduação no ensino superior, aquelas meninas propuseram restrições pelo que consideravam ridículo.
A excepcionalidade da situação de preconceito por idade parece tão grande que até o corretor do programa sugeriu que eu incluísse o termo “Etarismo” no dicionário. Aliás, cabe lembrar que os “–ismos” são bem redutores. Quem não se lembra das escolas literárias ensinadas com o sufixo “-ismo” para depois serem criticadas como enquadramento de escritores?
Aquelas meninas preferiram juntar-se à história de mulheres do passado e de “as minhas meninas não”, isto é, daquelas que sequer podiam ser alfabetizadas, por exemplo. Preferiram a possessividade, a exclusão e o deboche ao alheio, indo na contramão do que há tempos é bandeira para feministas e não-feministas: liberdade de escolha;liberdade de ir e vir;liberdade para pensar, ser e falar.
Penso que aquelas meninas de Bauru não tiveram notícias de Malala, a indiana que levou um tiro pela insistência de ir à escola. Que mundo desigual! Que mundo tão “normal”, aquela meninas de São Paulo devem viver e querer manter!
Aquelas meninas não parecem ter coisas em comum com Lia, Ana Clara ou Lorena de Lygia Fagundes Telles em “As meninas”(1973). O Brasil delas é bem diferente em muitos aspectos do Brasil da escritora Lygia. Talvez, valesse sugerir a leitora do romance brasileiro ambientado na Ditadura militar, a fim de suscitar nelas,quando leitoras, a percepção sobre o que é lutar por direitos, desejos e liberdade: “Abriu o portão com um gesto desabrido, heróico, gesto de quem assume não o seu caminho, prosaico demais, imagine, mas o próprio destino.”
(Acervo Estadão,Lygia Fagundes Telles em 1961)
A leitura literária não é salvadora de nada, nem de ninguém. Não cabe o to
edificante ou ingênuo quanto os destinos a serem tomados depois de uma
leitura como de “As meninas”, mas ela pode mobilizar partes dormentes do
corpo e da mente, disso sabemos.
Num país como o nosso em que a desigualdade social é aguda, em que muitos
jovens são “nem-nem”, nem estudam, nem trabalham, o que infantiliza
qualquer cidadania, já que apequena o valor social do grupo desocupado. Num
país em que as condições de inserção pelo estudo em oportunidades
estrangeiras são poucas e limitadas pela idade. Realizar uma formação
superior é para poucos em idade presumidamente “certa”.
Recentemente, concluí Pedagogia, minha segunda licenciatura. Imagino que se
estivesse no ensino presencial poderia ter enfrentado situação semelhante à de
Patrícia Linhares? Estou em idade certa para fazer algo mais de estudos
depois de minhas formações?Esta pergunta nem me ocorre. Há muito não
pergunto nem em brincadeiras “ Mamãe posso ir?”
Essa semana recebi tantas mensagens de colegas, amigas comentando que
curaram tardiamente a faculdade, ou ,como eu, decidiram voltar aos bancos do
ensino superior para agora dedicarem-se a antigos sonhos…
As notas que saem das mãos daquelas meninas alienadas, a eu ver, do que
quer uma mulher e do que pode uma mulher não lhes dariam condição de
serem aprovadas no curso da cidadania em curso de vidas tão jovens.
Que futuro nossas meninas terão? E aquelas meninas de Bauru? Que destinos
vão escolher para si? Para iluminarem sins?
Mas é evidente, com o caso de Patrícia Linhares, que é preciso investir na
formação ética de nossas meninas. Formação em que a estética também seja
capaz reafirmar a importância dos direitos civis e as conquistas de muitas
meninas e mulheres.
Por onde andam as princesas? Outras meninas?
Até a próxima semana!
As meninas(1656), Diego Velasquez(1599-1660),
Museu do Prado/ES.[ https://www.culturagenial.com/quadro-as-meninas-velazquez/ ]
ANGELI ROSE é professora, pesquisadora, carioca, mãe de Thiago Krause, tem vários
títulos honoríficos, atua intensamente no âmbito cultural, mas atualmente revê todas as conquistas, redimensiona as escolhas feitas e as parcerias estabelecidas, porque ao final e ao cabo, tudo pode escafeder-se em poucas horas, ou pela guerra mundial, ou pelo individualismo vigente que desmancha tudo o que parece sólido ainda.