Mercados/Negócios

Praia é cultura; a praia é Pop – Por Angeli Rose

“Não havia ocorrido a nenhuma de nós, acho que tal engano poderia ser o estopim para uma confusão”

Jornal Clarín Brasil JCB News – Brasil 08/04/23

Helena insistiu para que nos encontrássemos na praia de Copacabana, a nossa
“Princesinha do mar”, embora o mar não esteja mais pra peixes ou princesas. Mas para
raias e tartarugas até que ele anda…
E lá fomos nós, eu, Gildinha e Teca, fieis apoiadoras de Helena, à praia, num início de
outono que está mais para fim de verão carioca do que para qualquer outra onda. O sol
quente sobra, guarda-sol falta, pouco espaço na areia quase escaldante e cadeiras
chegam sem escolha de modelo. Esse é espaço “democrático” como alguns insistem em
chamar a praia.


A espera por uma deliciosa caipivodka de kiwi com gengibre do Sapo, um barman
formado na vida de barraqueiro, é também mais motivo pra esticar o papo. Então, entre
uma chuveirada e outra que o casal Sapo e Célia disponibiliza, com a sábia e sensível
iniciativa de refrescar os fregueses, tem-se a movimentação suficiente para esbarrarmos
nos vizinhos de cadeiras e cangas estiadas.


Mas estar na praia já é em si uma aventura cultural bastante curiosa, porque é bem
provável que você esteja ladeada por um super som com Funk em alto volume, outro
sonzinho mais modesto, porém possante, com Axé Music, e algum grupo bem animado
discutindo os últimos jogos de um time paulista. Eles, os paulistas, estão sempre por
aqui curtindo um fim de semana.
Mas, Helena, a certa altura volta do chuveiro e um pouco irritada conta o episodio que
viveu naqueles cinco minutos de espera e banho. Nós três, eu, Gildinha e Teca já nos
preparamos para alguma história inusitada e rapidamente enchemos os copos com uma
cerveja bem gelada.


Helena começou pelo fim, perguntando que não sabia mais como se dirigir a uma
criança sem o risco de ferir suscetibilidades e logo de cara inquiriu-nos: “O que é certo
nos tempos de hoje? perguntar se é menino ou menina? Perguntar o nome da criança
antes de falar o que tiver de falar para interagir com ela?


Sua aflição de imediato nos contaminou. Recordo que pensei sem ter tempo de
contrapor: E se o nome for um desses que não expõem o sexo da criança… E se for do
tipo Rosário, ou Lindisey. Não sei não…


O caso foi que uma criança se aproximou de Helena e querendo encher uma minigarrafa
de refrigerante no chuveiro, enquanto segurava um balde pequeno esperando a vez de
entrar no chuveiro e enchê-lo também. Disse Helena que buscando ser gentil e amável
com a criança que devia ter uns 5 anos no máximo, parda, com camisa de manga
comprida colada ao corpinho, um coque bem grande no alto da cabeça, ofereceu para
encher a tal garrafinha, o que a criança aceitou prontamente. Entretanto, quando
ofereceu par encher o baldinho, a criança não aceitou, insistiu que queria que fosse
enchendo a garrafinha e jogando no balde até que ele ficasse cheio. Daí, nossa amiga
percebeu que tinha se envolvido numa situação delicada, pois iria contrariar a criança, já
que não pretendia ficar enchendo garrafinhas para satisfazê-la até que enchesse o
baldinho.


Nós escutávamos já com sorrisos nos cantos das bocas que vez ou outra bebericavam a
cerveja gelada. Eu também imaginava um fim um pouco difícil para Helena sair daquela
situação em que se metera às voltas com o desejo de uma criança que seria frustrado.
Teca ainda não tinha compreendido o que aquilo tinha a ver com a pergunta inicial feita
por Helena. A irritação até era fácil de perceber com a garrafinha que entrou na história.

Eu que não ficaria enchendo garrafinha para a criança jogas dentro do balde até achar
que estava num nível bom e depois jogar tudo no chão.


Pensemos, por favor, é a brincadeira mais comum que as crianças pequenas gostam de
fazer, quer com líquidos, quer com sólidos. Quem nunca se viu brincando com montes
de areia, cavando buracos, enchendo buracos, virando baldinhos um monte de vezes na
praia com um filho ou sobrinho?


Porém, a questão não fora essa e para nossa surpresa tomou uma profundidade que
jamais esperávamos. Eu e Teca nos entreolhávamos em alguns instantes medindo as
palavras de Helena. E essa cumplicidade irritava mais ainda a amiga. O fato é que em
algum momento, Helena viu uma mulher chegando perto deles, criança e ela, falando ao
celular. Lelê, como também nos referíamos a ela em momentos de carinho e
brincadeiras, no rasgo de simpatia e gentileza, já meio esgarçado, comentou com a
mulher presumidamente a mãe da criança: “Ela quer ficar enchendo com a garrafinha e
eu lhe disse que demoraria muito…” E repetiu a fala meio sem graça, querendo sair
dali.


A mulher, de estatura baixa, negra, jovem, que não largava o telefone, esclareceu
Helena sobre a criança num tom bem grave: “Ele é homem. Ele é homem, não é ela”.
Mas o olhar também grave que acompanhava a voz e encarava minha amiga com
severidade, segundo ela, parecia estar bem disposta a um entrevero, caso Helena
reagisse mal. Foram as impressões de Helena diante do episódio fortuito. Helena
contou-nos que se sentiu mal por ter errado o sexo da criança e repetiu o teor de sua
fala, agora corrigida com o “ele…”


Voltou para nosso cantinho meio constrangido e assustado perguntando: Como vamos
nos dirigir a uma criança que parece menina, mas é menino?
Sem dúvida, a preocupação de Helena fazia sentido, principalmente, se encaramos a
mãe que parece se incomodar com a não obviedade para o estranho sobre o sexo de seu
filho. Assunto delicado e espinhoso. Não havia ocorrido a nenhuma de nós, acho que tal
engano poderia ser o estopim para uma confusão. Não foi o caso, porque Helena ficou
mesmo foi sem graça por ter dado tratamento pronominal errado ao menino. E ele
escutara e entendera tudo o que acontecera!

 Foto:
Saype/Instagram/Reprodução


A narração parte aflita, parte irritada de Lelê contaminou nosso ânimo por solidariedade
a ela. Mas Gildinha tratou de acalmar Helena, ponderando que numa hora dessas vale

pedir desculpas à mãe e à criança e em seguida manter a simpatia perguntando o nome a
ela. E vida que segue!


Quanto à irritação da mãe, seria melhor desconsiderá-la, ou não deixar-se impressionar
por ela, porque se para uma mãe é obvio o sexo da criança, para estranhos não o será
necessariamente. E numa hora dessas lembrar que “errar é humano!” Por outro lado, é
provável que ela estivesse um pouco cansada com o erro dessa natureza que talvez
aconteça com mais frequência do que se poderia esperar.


Agradecemos a sensatez e o equilíbrio de Gildinha. Mas ficamos um pouco reflexivas
sobre nosso olhar que se revelou tão convencional e estereotipado. Uma criança usa um
coque grande é menina; caímos naquele clichê dos “meninos usam azul e meninas usam
rosa”. Teca ainda acrescentou que a descrição da mãe do menino por parte de Helena já
indicava certa visão contaminada de preconceito, ao que Helena reagiu muito mal.
Lembrei que estava na hora de pedirmos um petisco no quiosque próximo a fim de
contra-atacarmos a bebida que consumíramos. A proposta feita em voz alta recebeu
unanimidade entre nós. “- Vamos às batatinhas!” Falamos num uníssono.


Às vezes, ficamos tão preocupados em não errar ou ferir sensibilidades, que esquecemos
que “pedir desculpas” existe para isso também e que não é vergonha alguma errar.
Há tanto o que se observar ao abordar outro ser humano, seja criança, jovem, adulto, ou
idoso. Quanto podemos abusar da precipitação se não ficamos sensíveis aos detalhes, ou
ao diferente…


No entanto, há muito mais a observar em nós mesmos, diante das situações que nos
parecem desafiadores.
Até a próxima semana!

ANGELI ROSE é professora, pesquisadora, carioca, mãe de Thiago Krause, tem vários
títulos honoríficos, atua intensamente no âmbito cultural, mas atualmente revê todas as conquistas, redimensiona as escolhas feitas e as parcerias estabelecidas, porque ao final e ao cabo, tudo pode escafeder-se em poucas horas, ou pela guerra mundial, ou pelo individualismo vigente que desmancha tudo o que parece sólido ainda.

https://twitter.com/ANGELIROSE10?s=20

Curta,compartilhe e siga-nos:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *