Reflexões sobre o racismo como fenômeno social e jurídico
Jornal Clarín Brasil JCB News – Brasil 30/04/23
Olá, eu sou Gilberto Silva, advogado e historiador. Tenho que trazer para vocês um assunto importante que trata do racismo como um fenômeno social e jurídico. Dentro dessa temática, vamos abordar as questões referentes ao mês de maio, em que tratamos do dia da abolição. Dentro dessa perspectiva, também trataremos se houve a abolição, se não houve a abolição. Precisamos fazer um raciocínio da exortação do século 18 e uma projeção da intelectualidade europeia, onde havia os pré-julgamentos e pré-questionamentos sobre a capacidade ou não das pessoas negras em relação à sua produtividade intelectual. É importante também trazer o pensamento da pessoa negra como homem. Alguns filósofos dentro daquela concepção tinham a opinião de que as pessoas negras não tinham capacidade intelectual para produzir, muito menos para exercer funções de privilégios.
Dentro do contexto mundial, temos os Estados Unidos que invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Vários pensadores daquela época traziam o pensamento dos Estados Unidos de que aquele povo era inferior e incapaz de conservar a civilização deixada pelos franceses. Ou seja, as pessoas negras não tinham condição de manter o que o povo francês trazia.
Iremos falar do Brasil e seus retrocessos. Vivemos em um país em que há abolição, mas não há distribuição de renda e muito menos oportunidades de igualdade que estão esculpidas na Constituição de 1988. É importante lembrar que a abolição do Brasil foi um ato político, primeiramente político. Nós temos a figura da Princesa Isabel que, naquele momento, estava à frente do trono e ali tomou esse ato que já era impulsionado pelos abolicionistas. Ela deu a oportunidade de fazer a lei da abolição e trouxe, então, a liberdade para o povo negro brasileiro.
É importante ressaltar que o povo negro brasileiro foi o último a ser liberto nas Américas. Portanto, o Brasil tem uma dívida histórica gigantesca com o povo negro. Precisamos lembrar que os negros africanos eram capturados em seus países de origem, como Angola, Moçambique e Nigéria, e transportados em condições sub-humanas nos navios negreiros. Eles atravessavam o continente sob a chibata e eram colocados em compartimentos dos navios sem higiene, sem condições de alimentação. É importante destacar que essas pessoas transportadas conviviam com cadáveres e fezes dentro daqueles compartimentos. Muitos morriam, vários passavam mal e não havia nenhum compartimento para que os mesmos fizessem as suas necessidades fisiológicas.
Chegando no Brasil, esse povo negro sofrido ainda vivia sob a égide da chibata, apanhando de seus senhores quando não estavam satisfeitos com seus trabalhos. É importante ressaltar as atrocidades e violências contra as mulheres negras, como estupros e violências sexuais sem consentimento. Ainda temos que pensar em quantas vezes as mulheres negras foram usadas para satisfazer os desejos sexuais de seus senhores, desejos estes que não podiam ser realizados por suas mulheres não negras. É importante a gente lembrar que o Treze de Maio não é somente um dia de comemorar a abolição da escravidão. Como comemorar uma abolição em que as pessoas não têm direito a nada, simplesmente jogadas ao relento?
Tivemos também outras leis antes mesmo da assinatura da lei da Abolição pela Princesa Isabel, como a Lei do Ventre Livre, várias outras leis, e a LEI Nº 581, DE 4 DE SETEMBRO DE 1850. (Vide Decreto n º 731, de 14 de novembro de 1850), conhecida como Lei Eusébio de Queirós, que extinguiu a importação de escravos pelo Brasil, mas essa importação via mar. É importante lembrar que essa legislação não proibiu o comércio de pessoas negras dentro do Brasil. Antes da abolição, a Lei dos Sexagenários passou a viger em 1885, garantindo a liberdade a todos os escravos que contassem com mais de 60 anos de idade. É importante ressaltar que esses escravos considerados “libertos” com 60 anos de idade já estavam totalmente debilitados e machucados pelos períodos em que estavam em cativeiro. Além disso, eles ainda tinham que ficar durante 3 anos a serviço de seus senhores, como uma forma de indenizá-los pela sua libertação.
E somente em 13 de Maio de 1888 é que foi sancionada de fato a Lei da Abolição, a qual nós começamos a falar, a Lei 3353, conhecida como a Lei Áurea, como a famosa lei da libertação. É importante trazer também que essa lei de libertação é totalmente ineficaz nos seus princípios no que tange à educação, a moradia e a dignidade da pessoa humana. Ou seja, aquele que foi liberto estava liberto apenas no pensamento do ato político. Ele não tinha a sua liberdade de viver dignamente, e muito menos dentro dos princípios que a gente já conhecia: a revolução dos princípios de igualdade, fraternidade, justiça e dignidade de todo e qualquer ser humano.
Dentro dessa visão e concepção de um estado brasileiro totalmente escravocrata, que permitiu todas as atrocidades da escravidão contra as pessoas negras, temos hoje uma grande sequela, uma grande questão em relação a isso, que são as desigualdades raciais. Essas desigualdades são um dos maiores impulsionadores para a manutenção do racismo, que é o exercício de uma atitude preconceituosa voltada contra determinado grupo racial, originada por pessoas que se julgam superiores por conta de características físicas, culturais, intelectuais e econômico-financeiras. Quando falamos de características culturais, tentamos lembrar também que o estado brasileiro, no ano de 1890, em seu código penal, trouxe a criminalização da capoeira. Posteriormente, esse mesmo estado brasileiro fez com que a capoeira fosse reconhecida como patrimônio cultural. Ou seja, a criminalização da cultura do povo negro foi uma forma de racismo. Ela é cheia de malefícios para uma sociedade, mas quando ao interesse do governo e do Estado, ele passa a ser um patrimônio cultural.
Nós temos aí, neste mês de maio, o mês da Abolição, Treze de Maio, o mês da libertação, onde lembramos de Zumbi dos Palmares, Luiz Gama e Dandara. Mas temos que lembrar também dos grandes abolicionistas, principalmente de André Rebouças, que tem sua figura e formação acadêmica como um grande engenheiro, uma pessoa que viajou o mundo, conheceu a Europa e tinha grande conhecimento, e que trouxe grandes obras, sobretudo para o estado do Rio de Janeiro. Porém, devido à falta de visibilidade, as pessoas sequer sabem que se trata de uma pessoa negra. É um momento de pensar e refletir sobre o quanto o racismo assola a sociedade e como ele vem crescendo e se mantendo no Brasil, pois trata-se de um racismo estrutural dentro de uma concepção de eurocentrismo, de um pensamento em que as pessoas negras e indígenas são seres inferiores, com pensamento de retrocesso de filósofos europeus que diziam, na maioria das vezes, que essas pessoas sequer tinham alma.
Nesse contexto, o Brasil futuramente editou algumas legislações para tratar justamente da punição para os racistas e as pessoas que praticam o preconceito racial. Devemos ficar cientes de que em 1951 foi criada a Lei Afonso Arinos, conhecida como Lei no 1.390, de 3 de julho de 1951, por esse renomado jurista. Antes disso, havia uma legislação branda que tratava o racismo apenas como contravenção penal, principalmente por parte do estabelecimento comercial, ensinos de qualquer natureza, a proibição de hospedar, servir, atender ou receber qualquer pessoa pelo preconceito de raça. Com a evolução dos tempos e a necessidade de acabar com o racismo, surgiu uma batalha. Em 1989, a Lei 7716 elevou as categorias de crimes sobretudo os crimes raciais, como uma forma de fazer com que haja punição severa e real para as pessoas que praticam atos de racismo.
Lembrando também que no Código Penal, nos termos do artigo 140, parágrafo terceiro, a legislação trata das injúrias raciais qualificadas, dentro dessa concepção de um estado brasileiro totalmente eivado em racismo. Esse racismo, muitas vezes velado, vem sendo cada vez mais revelado e praticado. Em um país onde, infelizmente, a desigualdade racial e o racismo persistem, mesmo com a pacificação do Supremo Tribunal Federal no que tange às cotas raciais e ações afirmativas, ainda temos discussões e pessoas que não se conformam com a necessidade de reparação por parte do estado brasileiro contra as pessoas negras que sofreram. Hoje, ainda, as pessoas discordam das cotas, que são um modelo americano de ações afirmativas.
Em Treze de Maio, tivemos a abolição, um fato em que o povo foi liberto. É tempo de repensar o racismo, a escravidão, e de pensar se ainda temos uma escravidão moderna. É tempo de pensar se a liberdade e o povo negro têm direito de viver, tendo em vista o genocídio da juventude negra, bem como toda e qualquer forma de violência em que as pessoas negras são vítimas. Treze de Maio é tempo de pensar se temos direito à educação, saúde e propriedade, e de questionar onde está a distribuição de renda do estado brasileiro. Treze de Maio é tempo de pensar se existe de fato uma dignidade da pessoa humana para aquelas pessoas negras e descendentes de pessoas escravizadas.
Dr. Gilberto Silva Pereira: Advogado, historiador, escritor, mestre em teologia, Doutorando em Direito Pelo Funiber, pós graduado em direito civil e processo civil, pós graduado em direito constitucional aplicado, pós graduado em direito penal e processo penal, pós graduado em história da cultura Afro brasileira, Juiz Arbitral, Auditor do Tribunal de Justiça Desportiva de Minas Gerais, Presidente da RARI-MG, Colunista de Jornais e blogs, Presidente da Igualdade Racial da Anacrim, Autor do Livro “A GENESE DA (IN) JUSTIÇA.