A contradição é um direito humano, mas havemos de concordar que em sociedade, manifestamos o lado mais cruel dessa contradição.
Jornal Clarín Brasil JCB News – Brasil 30/04/23
O trabalho a seguir pretende debater as relações de direito posto em um contexto midiático e em um contexto mais controlado. O entendimento de justiça nunca foi um consenso entre todas as células de organização social. Ainda que a Constituição tente estabelecer uma regra universal de valores manifestando o interesse do povo, cada cultura promove povos com valores e modus operandi distintos ainda hoje. Ainda que mobilize atualmente o avanço das tecnologias de informação, dentre propostas de direitos universais, é ingênuo acreditar que os valores sociais de determinada população irão coincidir sem conflitos com todas as culturas existentes no mundo. O que é crime em determinado lugar pode não ser em outro lugar. O que é inconcebível em um país pode ser fomentado em outros. A partir do momento em que acreditamos que nossos valores de justiça são os mais adequados e tentamos imputá-los a outras civilizações, o que cometemos ao longo da história são ações ainda mais abomináveis do que o inadmissível para nós mesmos.
O avanço das tecnologias de comunicação promoveu, segundo Almeida, no intervalo de 71 anos, mais especificamente de 1940 a 2011, o exato número de 136 leis penais, pensando que dessas, 104 leis tiveram a medida de gravidade e foram postas numericamente entre os anos 90 e 2011, cujo intuito era regular a prática de crimes no ambiente virtual: “Em geral, são leis emergenciais, ou seja, aprovadas após a eclosão de uma grave crise de medo e insegurança, explorada pela mídia” (ALMEIDA; GOMES, 2013. P. 159).As leis que regulamentam a prática do racismo como perversa à vista de ser balizada pelo direito penal vagueiam com bastante influência desse contexto. O papel da mídia para os debates jurídicos foi imprescindível em quase todas as leis reparatórias que buscam o reconhecimento humano da população negra.
Não há aqui dúvidas de que os questionamentos sobre a aplicação das leis de cotas foram influenciados por movimentos que negavam o racismo no Brasil. Vista capas de revistas que questionavam o mérito com base em casos específicos, como no emblemático caso dos gêmeos publicado pela revista Veja, que foram classificados de forma diferente, até manifestos marcantes com apoio de grande parte da comunidade intelectual, organizados por Ali Kamell na peça “Não Somos Racistas”. Sobretudo, na medida em que a discussão foi tomando outra dinâmica nas últimas décadas, foi ficando mais perceptível a recorrência do racismo e mais urgente uma resposta da instituição de justiça do país. A reeducação como solução para um caminhar distinto se deu pelas leis 10.639 e 11.649, incorrendo na provocação da adoção de outra narrativa dentro dos currículos institucionais de formação da mentalidade social. Ainda houve, por movimento social, a criminalização do racismo, posto como agravante de procedimentos e ações criminosas na sociedade.
O diálogo sobre a expressão e organização da sociedade perante a institucionalização do combate antirracista se deu não por benevolência dos gestores do poder, mas por outras vias, por reivindicação de uma sociedade que via escancarada a prática do racismo, inclusive na forma como se percebia a estrutura de poder e começavam a racializar quem estava e tinha acesso a grande manifestação do poder e a quem tinha menos acesso.
Outro debate que nos urge é sobre a regulação da mídia. Calcado no Art.5 da CF 88 que rege sobre a liberdade de expressão. Pertinente ao debate, observa-se que, embora tenhamos liberdade para fazer diversas ações, o papel da justiça é conduzir normas para que a liberdade individual do estado liberal não se fomente pela liberdade alheia. Não se confunde aqui liberdade de expressar com a liberdade de cometer crimes. Assim, tipificar o racismo não é uma ação ingênua, é tipificado como crime. Portanto, também não pode ser pensado como liberdade retirar a vida alheia por motivos torpes ou valores egoístas. Barroso (2014) aponta essa dicotomia atribuída a um “fracasso do laissez-faire na promoção da liberdade, da igualdade e da democracia”. Pois ao se deduzir que a liberdade não pode ser mediada, principalmente pelo direito do próximo, o que se tem é uma liberdade de opressão.
Nos últimos anos, o tema vem sendo uma grande preocupação social. De um lado, não é incomum perceber pessoas frustradas por não poderem mais se expressar, aliadas à prevaricação da justiça e ao discurso de ódio que mantém um estado desigual e limita o acesso a direitos. O fato é que essa reflexão prolongada carece de uma elucidação objetiva. Para ilustrar isso, podemos tomar um exemplo didático: muitos momentos da história resultaram em guerras raivosas quando certas civilizações se recusavam a aceitar comportamentos diferentes, como celibato, poligamia, manipulação de recursos esgotáveis, crenças e comportamentos sociais. Essas guerras culturais resultam em mortes em massa, mesmo que as sociedades que as promoveram sejam contrárias à morte.
É incoerente que a morte seja punida com severidade em um país que não tem problemas em lançar uma bomba em outro país e matar milhares de pessoas. É incoerente escravizar, matar ou subjugar organizações sociais em nome de um Deus que prega a paz e o amor. O que esses movimentos históricos revelam não é uma fidelidade à moral e à ética dos seres humanos, mas sim pretextos frágeis que fornecem suporte às ações mais vis da manifestação do poder. Quando é uma regra não matar seres humanos em um país, mas não há problema em matar seres humanos em outras culturas, a mensagem que ecoa na história é que alguns seres humanos são menos humanos ou não humanos a ponto de serem descartados como objetos e afins. Essa é a contradição da guerra, da colonização, da escravização, do genocídio negro, das políticas higienistas, dentre outras atrocidades humanas. É exatamente o oposto do que seria a prática da justiça.
O comportamento da mídia não é apenas manipulativo, mas também tem a função de manifestar com demasiada liberdade quais vidas importam ou não. Esse pensamento, além de ter raízes históricas na construção do racismo, reverbera nos processos constitucionais, onde a lei é aplicada de forma diferente para cada indivíduo, levando em consideração sua cor de pele, realidade social, gênero, crença, ideologia, entre outros.
As maiores constituições vigente do mundo tem como premissa igualdade e equidade, mas as mesmas, dentro do próprio pais que deveria defender, manifesta por esses pesos distintos promovendo a manutenção da desigualdade.
Percebam, os dossiês levantados da população carcerária, genocídio negro, feminicidio apontam a grave discrepância de acesso a dignidade dos diversos sujeitos dentro de um pais. Como poderia, se não isso, tantos relatos de presunção de culpa sem antes um julgamento, se a constituição, por exemplo, do Brasil, delega a presunção da inocência? Como poderia se fosse de outra forma, matar crianças em contexto de periferia ser posto como um erro, e matar crianças em contexto de abundante recurso um crime hediondo? Qual criança tem valor e qual é descartável?
É irresponsável crer que somente a mídia elege os valores sobre os corpos humanos, a sociedade, embora vários revoltos, também são coniventes. O que deflagra uma constituição conivente em dar manutenção a hierarquias de valores sobre os corpos, e como obvio, são os próprios seres humanos desse meio que executam, julgam e concerne essa lógica. Aqui não defendo que a maioria dos seres humanos são responsáveis, porem a maioria que detém poder de certo são, ou pela própria execução partida de sua percepção de ser, ou pela negligencia do silencio. A contradição é um direito humano, mas havemos de concordar que em sociedade, manifestamos o lado mais cruel dessa contradição.
Como uma constituição que prega direito a todos tem como presunção de inocência determinados sujeitos e presunção de culpa outros? Como é fácil encontrar que uma pessoa presa com uma quantidade pequena de droga seja um traficante e outra com toneladas seja inocente? Como a idade penal de uma criança preta é percebida como justa e a de adultos de uma escola de medicina é visto como ingenuidade? Como que para algumas penas uma desculpa resolve, e para outros crimes nem prova se demanda?
Os paralelos citados, que se manifestam pela pratica da constituição e pelo injusto trato da mídia, se convergem em uma essência, a manifestação do povo em forma de lei ou discurso. Presume-se de forma sonsa um só povo, porem o que a pratica enfadonhamente delega é que se trata da manifestação de um grupo especifico de privilegiados.
Esses problemas não são de natureza contemporânea, longe disso. Eles se apoiam em uma estrutura histórica que, embora constantemente confrontada e facilmente esvaziada de razão, resiste à revelia do que seja justiça. Desconhecemos algum lugar do mundo em que “justiça para todos” não seja mais do que uma utopia ou, na expressão mais ressentida, uma falácia.
É nítida a percepção de que um dos diversos problemas em que reincidimos é a ideia de encontrar uma solução simples para problemas endêmicos. São questões da ordem da educação, linguagem, história, sociologia, filosofia e direito. Fatalmente, esses problemas foram enraizados em diversas formas de organizar a própria constituição humana e antecedem a materialização dos valores que carregamos. A história da justiça consegue nos amparar em algumas hipóteses que apontam caminhos para instrumentalizar algumas ações. Porém, desprovidas de uma gramaticalização social, são apenas ferramentas encostadas na inutilidade hipócrita de assentarmos em uma ilusão de bem-estar. As leis que atuam em prol de reparar um mal social estrutural são inúteis se não acompanhadas de uma reformulação de como devemos pensar e agir na sociedade para alcançar o que seja justiça.
Ao longo dessa jornada como profissional e ativista social, o que sempre volta para aquele que busca justiça é o silenciamento. Não é incomum notarmos frases como “a justiça é racista”, “isso é um problema endêmico”, “não dá para resolver isso”, “a justiça é assim mesmo”, como se a pessoa que buscasse justiça tivesse simplesmente de aceitar. E quem busca injustiça pelo judiciário fosse naturalmente beneficiado, e assim segue a vida. Porque questionar e tencionar isso é tão absurdo quanto achar que a constituição seja de fato a manifestação do povo e zele pela igualdade de direitos.
Entretanto, se a justiça hoje, assim como quando institucionalizada, serviu ao longo da história para produzir injustiça, a questão que nós, alvos de racismo, confrontamos é: “Não seria simplesmente o fato de aceitar que não temos direitos?
(Com revisão gramatical por Paulo Siuves)
Dr. Gilberto Silva Pereira: Advogado, historiador, escritor, mestre em teologia, Doutorando em Direito Pelo Funiber, pós graduado em direito civil e processo civil, pós graduado em direito constitucional aplicado, pós graduado em direito penal e processo penal, pós graduado em história da cultura Afro brasileira, Juiz Arbitral, Auditor do Tribunal de Justiça Desportiva de Minas Gerais, Presidente da RARI-MG, Colunista de Jornais e blogs, Presidente da Igualdade Racial da Anacrim, Autor do Livro “A GENESE DA (IN) JUSTIÇA.