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ELAS E A HISTÓRIA A CONTRAPELO – Por Angeli Rose

“Cabe a nós, cronistas de nosso tempo, ligá-lo a tempos outros, até os imemoriais,
escovando a história a contrapelo, para identificar e descobrir as novas imagens e
figuras que também construíram o Brasil ,de modo a ajudarem a interpretação de nossa
cultura”

Jornal Clarín Brasil JCB News – Brasil 29/07/23

” Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.”

O filósofo alemão Walter Benjamin (1892 – 1940),importante ensaísta e crítico da
cultura do século XX  em seu escritos “Sobre  o conceito de história”, tece
considerações que até hoje norteiam importantes reflexões sobre as relações com a
história e o ofício de historiador na perspectiva do “materialista histórica”, tendo em
vista a sua formação e visão de mundo ser marxista (Por favor, não desista aqui da
leitura, ou pense que é mais uma comunistazinha a falar de política. Nenhum problema
se o fosse, mas não é o caso.).


Interessa-nos o que este pensador da cultura e da linguagem contribuiu e tem
contribuído para o desenvolvimento do pensamento crítico. Nos fragmentos reunidos
“Sobre o conceito de história” diz ele : ” O cronista que narra os acontecimentos,  sem
distinguir entre os grandes es pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que
um dia aconteceu pode ser considerado perdido na história.” Foi com ele que aprendi a
olhar de modo diferente para os acontecimentos que me cercavam ,dando a dimensão
mais adequada a cada um deles. Também foi a partir dele que comecei a compreender  e
a situar-me na construção da história cidadã. Talvez, o leitor e  a leitora estejam
estranhando a grafia de história com letra minúscula, mas é exatamente a ratificação de
visão de construção da história, feita de grandes fatos e os considerados pequenos fatos,
porque todos são fatos históricos.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Walter_Benjamin

Esse despertamento não pode desconsiderar que a vitória da seleção feminina brasileira
na Copa do Mundo na Austrália, numa goleada de 4 a 0 contra o Panamá – estreante na
Copa – é um marco para o novo momento do futebol feminina. Quando se imaginou a
transmissão de jogos de futebol feminino em canais grandes da mídia televisiva?
Desejou-se muito, talvez desde sempre, mas pareceu durante muito tempo da história
das mulheres  e suas conquistas.

Este marco para a história do futebol é também um marco para a história das mulheres
contra a opressão, um monumento de nossa cultura futebolística e feminina, além de
brasileira. Entretanto, ao lado dessa realização e do feito envolvido, que teve
manifestações pelas ruas do país, ainda que bastante incentivado pela mídia em geral,
tivemos notícias relevantes que fizeram andar a “fila” das organizações criminosas que
têm na morte por assassinato. A prisão do ex-bombeiro Suel e a delação premiada de
Élcio de Queiroz, como corresponsáveis dos assassinatos de Marielle Franco e seu
motorista Anderson Gomes em 14 de março d 2018. Outro feito importante, sem
dúvida, mas que coloca os holofotes sobre a barbárie que foi o ato de exterminar a vida
de Marielle Franco ,vereadora eleita do R de Janeiro, e irmã da hoje Ministra De
Igualdade Racial, Anielle Franco.


A visitação à estátua erigida à memória de Marielle Franco poderá ser um mero
monumento da cultura brasileira, até que se diga e propague que representa uma
vereadora carioca morta violentamente por assassinato. E muitos quererão tirar self
diante da expressão de luta e olhar doce que tão bem caracterizavam a personalidade
combativa da vereadora. Mais um monumento; mais uma estátua; mais uma história do
Rio de Janeiro. No entanto, a beleza da mulher e do ativismo eternizados na figura de
Marielle é também o recado de que ali jaz mais uma mulher que buscou fazer a
diferença como cidadã, lutando pela democracia.

Estátua erigida em homenagem a Vereadora Marielle Franco, assassinada pelo crime organizado do Rio de Janeiro – Imagem: Reprodução

Tanto no caso das jogadoras da seleção feminina brasileira de futebol, como no caso
ainda sem solução definitiva de Marielle Franco, são situações e episódios que merecem
reflexões que inquietem as nossas mentes : 

  • A jogadora Marta, “a melhor do mundo”, está fazendo a história do futebol há no

mínimo 24 anos,6 copas. Mas antes disso, é preciso pensar em quem foi a

referência para Marta a ponto de impulsioná-la para a carreira, quando o campo

de futebol era chão de terra;

  • Pode ser um “misto de emoções”, como declarou a irmã da vereadora

assassinada em entrevista. O “misto” é exatamente a expressão dessa

ambivalência tão bem apontada por Walter Benjamin : monumento de cultura/

monumento de barbárie;


E é nesse sentido que as histórias de vida de tantas mulheres são relevantes para que os
feitos que honram antecessoras do esporte e de militantes que vem lutando pelos
direitos das mulheres para o exercício pleno da cidadania, como era o caso de Marielle
Franco, porque são sob um olhar atento mais do que feitos ou registros de nossa
história, são índices de tantas outras vidas predecessoras, diretamente ligadas ou não.
Ao lado de Doris Monteiro (A rainha dos cadetes),e a genial Leni Andrade que levou a
Bossa Nova pelo mundo na voz potente e doce, de musicalidade indiscutível, outros
monumentos do cancioneiro popular brasileiro. 

Cabe a nós, cronistas de nosso tempo, ligá-lo a tempos outros, até os imemoriais,
escovando a história a contrapelo, para identificar e descobrir as novas imagens e
figuras que também construíram o Brasil ,de modo a ajudarem a interpretação de nossa
cultura. Assim, para além de saber “quem mandou matar Marielle? É necessário saber
“por que Marielle Franco?” Isto poderá ajudar a entender o contexto que tem gerado
outros casos como os de Isa Penna, Duda Salabert, Manuela D’Ávila, Áurea Carolina,
Maria do Rosário  e outros.


Mas saber sobre a vida e ouvir a voz da assessora de Marielle Franco, sobrevivente,
Fernanda Chaves, é também saber um pouco mais da história dos vencidos. Vencidos
pela morte. Vitoriosos pelo agigantamento da memória da vereadora carioca.
Ao matarem Marielle Franco, houve um atentado contra a Democracia, por isso é
fundamental saber “por que a Marielle?”
Muito mobilizada pelas histórias de vida dessas e de outras mulheres, despeço-me com
o poema “Canção do Presente”,a memória de Marielle Franco, de minha autoria e que
tive a oportunidade de apresentar à irmã de Marielle na FLIP/2018, na Casa da
Literatura :
             Canção do presente
Quando foi que os homens acreditaram
poder  abusarem  de suas mulheres?
 

Quem tramou empobrecer a contação
de histórias e de vidas?
Foi ele, ela, todos nós consentimos
sem meter tantas colheres,
omitindo palavras e feridas
 
Quando foi que alguém lhe disse
Que era atrevida e “não podia”?
Algum ser de fraca fabulação e
rala fantasia? Ou diversa sandice?
 
Quando quis falar e não conseguiu?
Deixou a ausência doída seguir
Com alguma faca ou tiro que lhe atingiu?
 
Agora corre o manto de sangue
Por ruelas e vilas, cidades e avenidas
Buscam cidadãs e sentinelas da paz
que assustadas por guerras indevidas
enfrentam duras criaturas com madrigais
 
Assim como as perguntas se sucedem
nossas sobrevidas se apoiam e alcançam
numa corrente imaginária e infinita
certas de que virão a paz ,o amor maior entre os seres

e a delicada beleza da mão estendida.

ANGELI ROSE é professora, pesquisadora, carioca, mãe de Thiago Krause, tem vários
títulos honoríficos, atua intensamente no âmbito cultural, mas atualmente revê todas as conquistas, redimensiona as escolhas feitas e as parcerias estabelecidas, porque ao final e ao cabo, tudo pode escafeder-se em poucas horas, ou pela guerra mundial, ou pelo individualismo vigente que desmancha tudo o que parece sólido ainda.

As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do Jornal Clarín Brasil – JCB News, sendo elas de inteira responsabilidade e posicionamento dos autores”

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