Reunir uma banda pra tocar uma música secular, que não fosse de igreja, era quase impossível.
Jornal Clarín Brasil – JCB News – Brasil 07/10/2024
“A Música e a Magia do Acaso”
Por Paulo Siuves
— Você já parou pra pensar em como somos sortudos? — disse Jorge, enquanto mexia a colher no café.
— Sorte? — respondeu Carlos, erguendo uma sobrancelha. — Sorte de quê?
— Sorte de poder ouvir qualquer música, a qualquer hora. — Jorge deu um gole no café, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo.
— Ah, sim. É, de fato, muito conveniente. — Carlos deu de ombros, ainda sem ver onde o amigo queria chegar.
— Pois é, mas você sabia que, na Idade Média, ouvir sua música favorita era um evento raro? — continuou Jorge, se animando. — Talvez só umas três ou quatro vezes na vida.
— Três ou quatro vezes? Que exagero! — riu Carlos. — Como assim? Não existiam bardos, menestréis?
— Existiam, claro. Mas não era como hoje, que você aperta o botão do Spotify e pronto. Músico na Idade Média era artigo raro. Reunir uma banda pra tocar uma música secular, que não fosse de igreja, era quase impossível.
— Impossível? Você é sempre tão dramático, Jorge… — Carlos o interrompeu, rindo de leve.
— Não sou eu quem diz. Li numa revista esses dias. — Jorge sorriu, percebendo a reação do amigo. — O mais interessante é que a música secular era ainda mais rara. Tipo aquela “Carmina Burana”, só quem tinha sorte de estar no lugar certo, na hora certa, ouvia.
— Ah, a boa e velha sorte! — ironizou Carlos. — E quem era o DJ da época? O padre?
— Ha! — Jorge deu uma risada curta. — Não tinha maestro, sabia? Os músicos se guiavam na intuição.
— Isso explica muita coisa… — Carlos riu. — E o que você está me dizendo é que hoje somos sortudos por termos playlists?
— Mais ou menos. O que eu estou dizendo é que, na Idade Média, cada música tinha um significado muito maior por ser tão rara. Imagina viver sua vida toda e só ouvir sua canção favorita uma ou duas vezes?
— Difícil imaginar, mesmo… — Carlos ficou pensativo. — Talvez a gente valorize menos porque está tudo à mão.
— Exato! Acho que perdemos o senso de exclusividade. Hoje tudo é tão acessível que parece até perder um pouco da magia.
— Magia? Ou preguiça? — Carlos riu. — Acho que você está romantizando a falta de tecnologia, meu amigo.
— Pode ser… — Jorge sorriu. — Mas não seria interessante ter esse senso de reverência pela música de novo? Ouvir algo que marca a nossa vida como se fosse um presente raro.
— Sim, mas hoje é diferente. Não dá pra voltar no tempo e fingir que a gente não pode ouvir qualquer coisa no celular.
— Não. — Jorge concordou. — Mas a gente pode aprender a apreciar de novo, com mais calma. Quem sabe, redescobrir o encanto na simplicidade?
Carlos deu um último gole no café, pensativo.
— Talvez… Talvez você tenha razão. Quem diria, hein? Tá quase me convencendo a voltar pra era dos trovadores.
Ambos riram, enquanto deixavam o café e seguiam para o próximo compromisso do dia, ainda refletindo sobre a conversa.
O Dr. Paulo Siuves nasceu em julho de 1971 na cidade de Contagem, Minas Gerais, e é bacharel em Letras pela UFMG. Além disso, ele é autor de dois livros e organizador de coletâneas. Atua como servidor público municipal e faz parte da Banda de Música da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte. Paulo Siuves é colunista nos jornais; Jornal Clarin Brasil e Cultural Rol. Ele possui um Ph.I. em Filosofia Universal e um Dr.H.C. em literatura. Paulo Siuves é ex-presidente e membro fundador da Academia Mineira de Belas Artes (AMBA) e também é membro da Academia de Letras do Brasil nas seccionais Suíça, Minas Gerais (RMBH) e Campos dos Goytacazes/RJ, além de pertencer a muitas outras academias.
As opiniões contidas nesta coluna não refletem necessariamente a opinião do Jornal Clarín Brasil – JCB News, sendo elas de inteira responsabilidade e posicionamento dos autores
E eu também, um ex músico de igrejas, nem percebi toda essa engenharia transformadora em curso, e só esse texto para me fazer despertar e refletir.
Belo texto meu irmão. Parabéns pelo excelente trabalho e por nós proporcionar essa linda reflexão sobre como deveríamos ser gratos pela fartura que temos na contemporâneaidade. Hari om!