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HUMANIDADE SENSÍVEL – Por Angeli Rose

Quem nunca acordou de “pé esquerdo” e ao entrar no elevador da empresa e
escutar aquela “música de elevador” irritou-se a ponto de desejar como nunca que o
suspenso aportasse imediatamente a sua frente

Por Angeli Rose/Jornal Clarín Brasil JCB News – Brasil 05/03/2022


Muitas situações podem tirar o sono de alguém. Cleonice, por exemplo, perdia o sono
cada vez que seu gato sumia pelos telhados do condomínio onde morava. Ele sempre
voltava, mas para ela era como se a perda definitiva fosse iminente. Compreensível já
que ela vivia sozinha e Tadeu, seu gato, era a única companhia e preocupação de sua
vida. Não foram poucas as vezes em que interrompemos uma conversa num café ou ao
telefone porque Tadeu reaparecera na varanda da casa de Cléo.

https://www.revistaprosaversoearte.com/content/uploads/2019/12/Vincent-van-Gogh-The-Starry-Night-true-version-aka-The-Furry-Night.jpg

Meet Zarathustra, da russa Svetlana Petrova

A falta de dinheiro para cobrir dívidas também é um forte motivo para perder o sono e
revirar na cama por horas. É motivo de pesadelos com insetos aos montes também. E
quem hoje em dia não passa por essa situação de escassez de dinheiro ante a carestia da
vida? Eu tinha um amigo que sempre dizia: “dinheiro não é problema; problema é a
falta de dinheiro!”. Eu tinha de concordar com ele, porque quem sabe gastar e com o
quê gastar não tem problema com dinheiro.
O afastamento de quem amamos é uma forte razão para se perder o sono e a paz. Dentro
de você pode começar uma angústia misturada à saudade que chega a manifestar um
aperto no peito, como se houvesse uma prensa sobre seu peito, ou alguém estivesse
dando um nozinho dentro de suas artérias com uma fita estreita, porém, suficiente para
fazer ver estrelas de dor de um peito apertado. Por segundos, somos capazes de acreditar
que se interrompeu o fluxo de sangue e o congestionamento de tais sentimentos
confunde-se com a falta de ar circulando suavemente pelo organismo ávido por
tranquilidade.
Uma música de batidas fortemente marcadas também pode ser motivo de tirar a paz de
alguém. Quem nunca acordou de “pé esquerdo” e ao entrar no elevador da empresa e
escutar aquela “música de elevador” irritou-se a ponto de desejar como nunca que o
suspenso aportasse imediatamente a sua frente.
E tudo bem se você é como Lindaura que perde o sono só de olhar para “A Noite
estrelada” (The Starry Night) de Van Gogh, ou por deitar à noite olhando pro teto,
lembrando-se do quadro que viu na última exposição em que visitou.

10 segredos da obra mais famosa de Van Gogh

https://istoe.com.br/10-segredos-da-obra-mais- de Van Gogh


A paz de uma mãe pode ser tirada enquanto o filho não retorna a casa, estando numa
noite de mais uma balada. A mesma paz perdida da mãe de um jogador de futebol,
brasileiro, que vivia em Kiev na Ucrânia e esteve tão perto do perigo de massacre. A
falta de paz das mães que atravessam a fronteira de seu país amado com filhos, poucas
roupas, quase nenhum alimento, cachorro, algum cobertor, garrafas de água, etc. Mas
isso o leitor sabe. A leitora vê nos jornais e noticiários.
Poderia continuar fazendo aqui o levantamento de situações que tiram a paz de qualquer
mortal, mas prefiro chegar ao ponto que me moveu a escrever esta crônica de hoje: a
iminência de uma terceira guerra mundial. Sim, uma guerra mundial em tempos de tanta
tecnologia e desenvolvimento sólido por máquinas cada vez mais autônomas a fim de
oferecer mais conforto e, quem sabe, até melhor distribuição de bens para os humanos
encarnados.
Liliene, por exemplo, prefere falar de suas tentativas de dormir depois de quase engolir
a página do Jornal em que seu nome aparecia como uma das que precisava “soltar os
bichos”. Ver alguém “soltando os bichos” pode ser motivo suficiente para não ver a
criatura se exaltando e deixando marcas na parede recém-pintada.
No entanto, o que pode tirar a nossa paz nesse momento é a guerra. A guerra por
desenvolver-se entre Ucrânia e Rússia. E há especialistas que dizem que o “pior está por
vir!”. Mas o que a guerra entre estes países pode ter a ver com a nossa paz aqui dentro
de cada um e deste lado do planeta?
Se você, o senhor, a senhora, já perderam a intimidade como valor de vida, nada do que
disser a respeito da “Paz mundial” fará diferença ou sentido. Porém, no caso contrário,
você ainda é daqueles ou daquelas que entende o quanto a intimidade consigo mesma
pode trazer-lhe conforto emocional, aí valerá pensar mais um tanto sobre os sentidos do
cenário bélico a que assistimos.
Primeiro, porque enquanto espetáculo é de difícil digestão. Segundo, porque os nomes
que dão ao conflito entre Ucrânia e Rússia, pouco dizem sobre seu modo de estar no
mundo; e ainda, porque quem vive num país violento como o nosso, em que a violência
de asfalto é cotidiana(tem a do campo também! E não menos importante é.) e a

acontecer em qualquer lugar pouco tolera a violência gratuita de um tanque de guerra
sobre o asfalto.

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6f/Mural_del_Gernika.jpg

Pablo Picasso, 1937.

Enfim, assistir a um Putin investir numa estratégia à moda Hitler de expansão territorial
e ouvi-lo ironicamente reclamar ou utilizar como argumento a feição neonazista de
alguns Ucranianos dentre os 44 milhões de cidadãos que vivem naquele país soa como
algo muito fora da ordem e de grande anacronismo, como jogar “Banco Imobiliário” no
século XXI com cartela e dadinhos. Século em que os brinquedos e jogos lidam com o
simbólico que vê a riqueza na Amazônia ou nos atletas negros de alta performance
como tesouros.
Eu estou sem paz e você? Ando sofrendo ao pensar que nem precisamos de tanques para
ver parte de nosso povo sendo arrastado pelo asfalto de lama, como o que aconteceu em
Petrópolis, ou Brumadinho há anos. Ando sofrendo ao ver a carestia cotidiana e ao
mesmo tempo perceber que temos um governante (eleito!) que pouco ou nada faz para
que nossa vida seja menos impactada pelo Petróleo que deverá faltar ou ficar mais caro,
o pão que deverá aumentar mais ainda de preço, o fertilizante que pode desorganizar o
planejamento do “agronegócio”, tudo a partir de agora, mesmo que nem precisemos
tanto do produto russo. Deito a cabeça à noite sem conseguir dormir depois de um dia
de trabalho que não é suficiente para recuperar a dignidade cidadã perdida em meio às
dívidas pendentes.
Não se estranhe porque está difícil ficar em paz consigo mesmo. Não se irrite se estiver
sem vontade de comer ou se divertir à vera, ainda que o carnaval esteja distante em
meses de todos nós. Não evite chorar, se de repente perceber que todos os centavos e
trocados foram dados pelas esquinas, e nem assim você conseguiu aplacar a fome dos
inúmeros pedintes à espreita das saídas dos supermercados vizinhos com os quais
esbarrou. Simplesmente repare que seu desencanto está ali, instalado bem dentro de seu
peito, cheio de nozinhos, decepcionado com a espécie que guerreia por mais equitares
de terra.

Reprodução do Abaporu

”Aba” “Poru”: Abaporu; Homem que come, de Tarsila de Amaral.

Abaporu pode ter tirado a paz de alguns parnasianos em seu momento de lançamento,
dando a ver para o que a arte modernista veio expressar o que a modernidade de
algumas metrópoles mundiais estaria sinalizando há algum tempo com nova paisagem
modificada e os novos hábitos, como a pedagogia social oferecida pelo mar, através do
banho de mar tropical. Entretanto, sem esquecer a ironia do “homem que come” numa
terra de abundante plantio, mas de cidadãos famintos de dignidade.
Estou sem paz assistindo atônita a um louco imperialista e ditador que decidiu ampliar
seu poder avançando sobre um país que tem feição política diferente e preserva a
democracia conquistada, com toda complexidade que uma análise séria venha
redimensionar a trajetória ucraniana..
Estou em paz comigo ao saber que estou fazendo o melhor no âmbito cultural que é a
minha praia. Porém, estou sem a mesma paz ao saber que muitas crianças tiveram seus
lares arrancados de si ao terem de seguir em direção a um país desconhecido para suas
infâncias.
Que a paz esteja conosco, seres humanos do Ocidente, neste momento de intensa
preocupação com a possibilidade de perderem a calma com Putin e uma 3ª guerra
mundial estourar, de consequências inimagináveis, mesmo com a internet das coisas
indicando que nossa vida poderia ser confortável algum dia…
Espero que você esteja com boa parte de sua paz interna perdida também, porque talvez
isto lhe recomende como ser sensível humano e pouco alienado do mundo
desequilibrado e desigual em que vivemos e não suportamos mais. Não creio ser
possível ficar “neutro” ante o êxodo forçado de 10 milhões de cidadãos encarnados
saindo da Ucrânia invadida pela Rússia. Duvido de minha “humanidade” em muitos
momentos atualmente. Será que ele também?

ANGELI ROSE é professora, pesquisadora, carioca, mãe de Thiago Krause, tem vários
títulos honoríficos, atua intensamente no âmbito cultural, mas atualmente revê todas as conquistas, redimensiona as escolhas feitas e as parcerias estabelecidas, porque ao final e ao cabo, tudo pode escafeder-se em poucas horas, ou pela guerra mundial, ou pelo individualismo vigente que desmancha tudo o que parece sólido ainda.

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