Cultura/Lazer

COLUNA DA ESCRITORA ANGELI ROSE

Por Angeli Rose

DE SHEREZADE A MARIELLE FRANCO: VOZES DO FEMININO E A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

“Sob o ardil de véus diáfanos, o olhar de Sherezade vaga, ultrapassa o rosto do Califa, consulta as estrelas. Através das janelas em arco, a via estelar constitui uma cartografia onde lê histórias que adiciona ao seu repertório…

A partir de breve apresentação do romance “Vozes do Deserto” de Nélida Piñon (2004), presentificado na epígrafe acima, e buscando dar visibilidade ao processo de reconto em que o imaginário é o destaque para o percurso da fabulação, quer de histórias de vida, quer para histórias de “papel”, resgatadas pela polifônica e milenar personagem Sherezade, exímia contadora de histórias dos contos de “Mil e uma noites”, hoje convido o leitor e a leitora para caminharem no pontilhado desta crônica que inicio.

Vamos tomar a imaginação como técnica e magia política, a fim de enfrentar certa violência masculina e social. Para tanto, volto minha memória de leitora para o premiado romance “Vozes do deserto” da imortal Nélida Piñon. Em 2005,este reconto ganhou o prêmio Jabuti e anos depois foi incluído na coleção “Mulheres na literatura” de autoras universais que o jornal Folha de São Paulo lançou em 2017, sob a curadoria de Manoel da Costa Pinto. E foi assim que cheguei a ele, com curiosidade indefinida, bisbilhotando uma prateleira aqui, outra gôndola de revistas ali, numa de minhas visitas à banca de jornal do bairro em que moro, hábito que não perdi mesmo com toda tecnologia digital à minha disposição – se me permite a digressão, caro leitor, cara leitora. Logo depois de encontrar o referido título como lançamento daquela semana, se bem me lembro, o jornaleiro fez questão de destacar a novidade, ao que acolhi com entusiasmo, primeiro por ver a iniciativa da criação da coleção popularizando o acesso às obras literárias universais de autoria feminina; segundo, por reconhecer que o senhor Cláudio, “meu” jornaleiro, entendera o tipo de leitura a que sou afeiçoada. (Tais percepções parecem fazer o mundo ser mais nosso e pacificam algumas dúvidas acerca da existência de comunidades de leitores. Não é mesmo?)

Então, de posse do volume, já faz alguns anos, dediquei-me a ele em leituras e releituras por motivos variados. Mais recentemente, por ocasião da primeira “Feira Double de livros de São Pedro da Aldeia” (município do estado do Rio de Janeiro), idealizada pela editora e jornalista Izabelle Valladares e encampada pela prefeitura local. Fui convidada a ministrar uma breve palestra como participação especial dentro da programação que incluía um festival de contação de histórias e o lançamento da antologia “Vozes femininas” (Literarte) da qual sou coautora com o poema “Metáforas do coração”, uma homenagem à filósofa malaguenha María Zambrano, referência de muitos estudos que desenvolvo sobre a relação entre poesia e filosofia.

Minha voz rouca fortaleceu-se de alegria ao poder desenvolver atividade de que mais gosto, depois de escrever, que é conversar com e sobre literatura, como quem tem no “direito à literatura” sua “missão” de vida. Isto deu-se no último domingo passado de manhã ensolarada, 8/3 (Tenho de admitir que ver conhecidos e desconhecidos sentados a minha frente por quase uma hora me escutando falar sobre literatura, especialmente, brasileira foi algo alentador para quem lê constantemente dados estatísticos indicadores do baixo índice leitor no Brasil). Assim, parto desse evento para compartilhar com você, leitor, leitora, a beleza, já anunciada, do romance e a força vivificadora da arte de contar histórias, considerando o feminino que conta e o feminino que é contado em uma dinâmica que dá a ver a tipologia da violência na sociedade contemporânea, contraditoriamente, abolidora de fronteiras.

Nesse traçado, chega até nós a questão sobre se foi a falta de imaginação que matou no Rio de Janeiro a vereadora Marielle Franco(?). A tese aqui levantada é a que podemos desenvolver enquanto ainda não temos respondida a pergunta central sobre o fato trágico: Quem mandou matar Marielle Franco? Vejam, reflitam, a política era narradora de boas novas, ao menos para uma parcela da sociedade (Foram 46 mil votos que a elegeram!), pois imaginava e defendia um modo de vida que aceitasse as diferenças e, com elas, lidasse para a transformação de um mundo melhor, mais justo e menos desigual.

Aparentada de Sherezade, pela capacidade de fabulação, Marielle fazia da tribuna, talvez sem o saber, o espaço que dia a dia adiava a ação do verdugo de ceifar-lhe a vida a mando de um “califa”, soberano contemporâneo, de nós ainda desconhecido. Por isso, nossa crônica sugere, desde seu título, uma ligação entre as narradoras de histórias de ficção e de vida, Sherezade e Marielle Franco.

Retomo o romance de Piñon para dizer, com toda licença poética que me for concedida, que a arte de contar histórias naquele contexto foi fundada a partir do feminicídio em série que o califa manda executar a cada amanhecer, em seguida às noites de núpcias com as donzelas desposadas. Traído pela primeira esposa, tornando-se insensível ao sofrimento feminino e dos familiares das moças escolhidas, o “soberano”, dono do poder de vida e de morte, num regime autoritário baixa um decreto em que estabelece a execução regular das donzelas com as quais casará após passar a noite de sexo nupcial. Diante de tamanha atrocidade, ódio às mulheres e injustiça, Sherezade toma para si a missão de interromper tamanha insensatez, através da corajosa iniciativa de transformar o califa com a contação histórias.

A missão bem-sucedida de fato interrompe as execuções, frustrando o verdugo após cada amanhecer de sobrevida da contadora de histórias (“A cada noite, o seu timbre, milenar, repercute na fantasia e nas palavras que vão dando corpo a seus enredos (…) Sherezade fora a primeira a interromper a sequência de execuções, quando o Califa, a despeito de o verdugo esperá-lo à entrada dos aposentos, sentia-se impedido de cumprir o preceito da lei…”). A protagonista cria magistralmente uma espécie de dependência do todo soberano a suas narrativas, por meio da curiosidade como recurso principal. A contadora intencionalmente suspende o desfecho de cada história para preservar a própria vida e, consequentemente, de outrem.

A imaginação, reafirmo, usada com esmero e consciência crítica leva a sagaz narradora a vencer a incredulidade e o amargor do homem traído e ultrajado, sua “fera ferida”. Entretanto, essa imaginação criadora não vem do nada, bebe na fonte da cultura de seu povo: “Com os olhos fixos nos jardins, Sherezade imagina à sua frente um tapete mágico, de cores exuberantes, cujos nós, certeiros, impediam o vento de vazá-lo. Um artefato graças ao qual ela sobrevoa as barracas dos mercadores, rouba delas uma penca de uvas, para deixá-la tombar no regaço de um mendigo. Da altura em que se encontra, as minúcias da cidade agigantam-se, tudo se origina comovidamente das ações de seus habitantes.”

E a autora, Nélida Piñon, também magistralmente, com o rigor conquistado através dos cinco anos de pesquisa traz-nos a cultura árabe, assinatura que por certo contribuiu para que o romance recebesse reconhecimento nacional e internacional. E nada melhor do que dar voz à literatura: “Entregue à penumbra, que ampliava o espectro da crueldade do Califa, Sherezade não duvidava que aquele homem encarnava o mal. Em nome da honra ofendida, ele esquecera-se da doutrina do Islã, celebrada especialmente no Ramadã, data em que o Arcanjo Gabriel revelara ao Profeta Maomé os mandamentos hoje contidos no Corão.” 

Como é possível ler, a título de suscitar no leitor e na leitora a curiosidade como convite à leitura ou releitura do romance “Vozes do deserto”, convivendo por algumas horas com a história de Sherezade, é também, para além de transportar-se ao tempo outro da vida no Ocidente, ao findar a última página voltar-se para o próprio tempo do leitor, da leitora, e perceber o absurdo dos dias em que vivemos quando não temos mais lugar para “soberanos” que queiram decidir sobre a vida e a morte de mulheres, quer no plano doméstico, quer no âmbito social e político, como é o caso Marielle Franco, do ponto de vista criminal.

O “direito à literatura”, o direito à contação de histórias, o direito a imaginar um outro modo de vida, um modo menos desigual e mais justo socialmente, em países democráticos como o nosso, não pode estar subjugado a ideologias autoritárias e fascistas. É intolerável calar as mulheres que acreditam na palavra, na força da palavra em estado de poesia, de história, ou de nova forma de ver o mundo. É inaceitável calar mulheres.

Ler o romance de Nélida é dar vida à contação de histórias, é presentificar Sherezade de ancestralidade honrada também na trajetória ousada de Marielle Franco. Ancestralidade essa que fundada na transgressão lembra a cada leitor, leitora, o quanto uma cidadania pode ser mutilada se apartada do desenvolvimento da capacidade de fabulação.

Depois dessa breve defesa da arte de contar histórias, seja de vidas inventadas ou de vidas vividas; faço o convite à poesia, apresentando minha singela homenagem a Marielle Franco, “Canção do Presente”, poema já publicado no Brasil, em Portugal e na Itália com a devida tradução:

CANÇÃO DO PRESENTE 

Quando foi que os homens acreditaram

Poder abusar de suas mulheres?

Quem tramou empobrecer a contação

de histórias e de vidas?

Foi ele, ela, todos nós consentimos

sem meter tantas colheres,

omitindo palavras e feridas

Quando foi que alguém lhe disse 

Que era atrevida e “não podia”?

Algum ser de fraca fabulação e

rala fantasia? Ou diversa sandice?

Quando quis falar e não conseguiu?

Deixou a ausência doída seguir 

Com alguma faca ou tiro que lhe atingiu? 

Agora corre o manto de sangue

Por ruelas e vilas, cidades e avenidas

Buscam cidadãs e sentinelas da paz

que assustadas por guerras indevidas

enfrentam duras criaturas com madrigais

Assim como as perguntas se sucedem

nossas sobrevidas se apoiam e alcançam

numa corrente imaginária e infinita

certas de que virão a paz, o amor maior 

entre os seres

e a delicada beleza da mão estendida.

Marielle, presente!


Angeli Rose escreve às quartas-feiras para essa coluna; foi agraciada com a Medalha Marielle Franco(2018); é professora de Literatura há mais de 20 anos, Dra. em Letras(Ph.I. em estudos filosóficos e PhD em educação /UFRJ);escritora e pesquisadora; Vice-presidente da ALB/Campos-RJ; e membro de diversas outras academias e associações de Letras, Artes e Ciências; Chanceler Master e Comendadora em Educação de Excelência e Qualidade(Braslider); autora de dois e-books (Editora Atena,2017)e coautora de antologias nacionais e internacionais. Recebeu o prêmio “Amo Amar você” de poesia e de contos; seu primeiro livro solo é “Biografia não autorizada de uma mulher pancada”, editora Bonecker, 2018.
Curta,compartilhe e siga-nos:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *