Cultura/Lazer

ACADEMIA MINEIRA DE BELAS ARTES – ANGELI ROSE

CAROLINA NA JANELA

Por Angeli Rose

Dia 14 de março último, a escritora Carolina Maria de Jesus faria mais um aniversário, se viva, no entanto, tal data acabou por ser ofuscada justamente pelas manifestações em torno do assassinato de Marielle Franco, vereadora carioca executada com tiros há 2 anos (e nunca será demais voltar ao assunto enquanto a pergunta crucial não for respondida : Quem mandou matar Marielle?).

Então, como dizia, também foi o dia de Carolina, nascida na cidade de Sacramento, Minas Gerais (1914), que em vida lançou-se na vida pública editorial com o célebre “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”(1960). E quem não se recorda dos versos finais de “Muitos fugiam de mim” ? Ou não irá logo buscar na internet o poema depois de receber parte desse sensível e valioso documento literário?

 (…) Adeus! Adeus, eu vou morrer!

E deixo esses versos ao meu país

Se é que temos o direito de renascer

Quero um lugar, onde o preto é feliz.”

Pois sim, hoje quero trazer para mais perto de nós, eu e você leitor, leitora, algumas reflexões disparadas ao folhear minha agenda literária  “Mulheres de Palavra” que levou ao dia da “poetisa negra”  – como fora chamada Carolina de Jesus depois de ter publicado nos jornais Folha da Manhã (1941) e Folha da Noite (1958).

Muitas décadas adiante vamos escutar o rap “Eu só quero é ser feliz/Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é…” do MC Cidinho em parceria com o Doca. Tal ressonância de intenções manifesta ao mesmo tempo o desejo existencial da humanidade, ser feliz, e numa outra dimensão manifesta a perspectiva local, em épocas e gerações diferentes.

Quem nunca pensou em ser feliz? Quer nos momentos de infelicidades, quer nos momentos venturosos em que o desejo de prolongá-los assalta nossa mente(?).

Fiquemos com o local, que eu diria já pertencer à dimensão “glocal” em tempos globalizados. Sabemos que as estatísticas sobre a mortalidade de jovens negros entre 18 e 25 anos nos grandes centros urbanos em nosso país têm indicado o quanto a desigualdade social ainda é estruturante e desestruturadora de núcleos sociais, a começar pelas famílias atingidas pela violência que abate de modo tão cruel jovens negros, seres humanos, e não “arrobas” de um gado difuso por uma diáspora incontinente.

Então, como ser feliz num país tão injusto e desigual?

O que Carolina na janela, seja a do Chico Buarque, seja a escritora oriunda da favela do Canindé, pensaria sobre o país de agora, da década de 20 do século XXI?

Há meses, na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, tive a alegria de ter propostas selecionadas pela Secretaria Municipal de Cultura de Niterói-RJ (Equipe de promoção da leitura e do livro), por edital público,e uma delas era a realização da mesa ” LITERATURA,NEGRITUDES E INTELECTUALIDADES: SABERES TRANSGRESSORES, coordenada por mim e formada pelas convidadas, professoras, doutoras Maria Aparecida Ribeiro (UNIRIO) e Cristina Moraes (Seduc-Angra dos Reis/RJ), ambas pesquisadoras, escritoras e negras. No evento, aprendi com Aparecida como o conceito de “escrevivências” cunhado da notável Conceição Evaristo (UFMG) pode ser uma chave de leitura para a obra de Carolina de Jesus; e da professora de teatro, neta de Clementina de Jesus, Cristina, aprendi sobre as altas habilidades em crianças negras, aspecto relevante na educação dessas crianças e negligenciado há décadas em sociedades embranquecidas historicamente como a brasileira.

A mim, coube apresentar um rápido panorama da chamada literatura negra no Brasil e dar alguns breves destaques à formação da intelectualidade negra, alinhavando os ricos elementos apresentados por minhas companheiras de debate (proposta ambiciosa, porém, realizada com paixão e rigor). A paixão ficou por conta do encantamento que a professora Moraes transbordou no estande ao cantar em Yorubá e trazer para nossa tarde sambas cantados por Carolina e por Clementina de Jesus. Já o rigor esteve a cargo da professora Maria Aparecida que trouxe com sua voz suave alguns fragmentos poéticos da obra da poetisa.

 E ainda destaco nessa crônica da semana outro fragmento de Carolina que minha trajetória  de docente me ensinou a ler. ( Desculpem a aparente informalidade no tratamento dispensado à singular escritora que trouxe a favela para a boca de cena em décadas nas quais, ao contrário, pareciam querer varrer para debaixo do tapete da classe média o duro cotidiano do favelado; mas, todas as vezes em que olho para minha boneca Namoradeira na estante à frente da obra da poetisa, sinto certa proximidade daquela mulher). O trecho foi retirado do poema “O colono e o fazendeiro” :

Diz o brasileiro

Que acabou a escravidão

Mas o colono sua o ano inteiro

E nunca tem um tostão.(…)

A potência desta literatura carolina reside no fato de dar a ver o quanto fazer a história de um país exige também conhecer outras facetas, nem sempre oficiais, porém, transgressoras dos saberes muitas vezes estabelecidos e fixados como únicos. Basta fazer a pergunta inicial do novelo simbólico: De que escravidão “fala” o poema dessa mulher negra?

Não vivemos num país feliz, por todas as mazelas noticiadas diariamente aqui no Clarim e em outros veículos de comunicação, mas podemos considerar o fato de que acompanhados pela leitura crítica (aquela que forma consciências cidadãs) de escritoras como Carolina de Jesus, Maria Firmina do Reis, Conceição Evaristo, Jarid Arraes, Ana Maria Gonçalves, Geni Moraes, Kiusan de Oliveira, Alzira Rufino, Íris Amâncio, para lembrar de algumas, sem deixar de citar fontes fundamentais como Machado de Assis, Lima Barreto, Renato Nogueira,entre tantos outros e outras, podemos imaginar e transformar o país em que vivemos num território mais justo e menos desigual, principalmente, para nós negros e negras.

Despeço-me com o poema lido ao final da mesa da “Bienal”, de minha autoria, publicado na antologia portuguesa “Conexões Atlânticas III” pela editora In-Finita, Sonho de Quelé, homenagem feita em 2018 a Clementina de Jesus, conhecida também pelo apelido carinhoso de Quelé :

SONHO DE QUELÉ

Levaram os grãos para areias distantes

com suor negro em meio a tormentas  e blues

Levaram doenças, melindres, esperanças e ritos

por destino negro através de mapas e faróis

Levaram letras, tecidos e joias por entre passos desterrados

Para degredo dos homens submissos e vendáveis

Levaram almas, princípios e leis a terras longínquas

com força alheia e negras mulheres desamparadas

Levaram parte da cultura das áfricas

com açoites, batidas estranhas e guerreiras

Levaram Nzinga,Maked a e Anima

Assim surgiu Quelé, clemente, clementina

Levaram sem volta os olhares pretos e curiosos

E deixaram nos mares os ossos partidos pela história.

Angeli Rose, escritora, é D h.c(FEBACLA) e Ph.D em Educação (UFRJ), Dra.Letras (PUC-Rio), pesquisadora, poeta e ativista cultural premiada, terapeuta social e facilitadora holística (UNIPAZ-RJ). É membro de diversas associações e academias, sendo vice-presidente da ALB/Campos-RJ. Foi agraciada com vários títulos honoríficos com destaque para a Medalha Marielle Franco, categoria “Mulher empoderadora”- (Literarte/Casa Olodum,foto 2018). Autora de BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA DE UMA MULHER PANCADA- Editora Bonecker, além de ter participações por coautoria em antologias nacionais e internacionais sendo a mais recente: “Registros femininos- Coletânea de autoras brasileiras contemporâneas”-Editora Chiado books,2020.

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