Cultura/Lazer Mercados/Negócios

ACADEMIA MINEIRA DE BELAS ARTES – Angeli Rose

As vozes que escutamos ecoar da prosa poética acima assaltam os espíritos mais alertas, pois contam-nos brevemente a caminhada de mulheres sob fortes grilhões quase indestrutíveis

Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB – Belo Horizonte em 23/10/2020 às 05hs18mins

                                             VOZES VOLUMOSAS

Angeli Rose

“Algumas vozes femininas viveram presas no deserto até serem exterminadas, por muitos séculos, entre os véus das sombras algozes. Foram uma a uma desistindo ou enlouquecendo, solitárias nas isoladas celas de suas vidas dominadas. Seguiram sem vontade própria sultões, piratas, reis, caciques, generais, capitães do mato, entre tantos outros senhores sem engenho de arte e vida.

Mas, desde que certa vez uma contadora de histórias cavalgou pelas noites insones com suas palavras, os ímpios começaram a conhecer a força feminina. Na memória inaugurada, o nu dos muitos corpos violentados e abandonados em tempos imemoriais foi-se travestindo de versos e canções, trovas e poesia, consagrando imagens e cenas de esperança que salvaram donzelas e depois mulheres, meninas e anciãs. Sherazade, a primeva, abriu os grilhões com sua perspicácia em aventuras inebriantes que por longos anos vem seduzindo ao coração mais empedernido. Sua voluptuosidade misturando-se com voluntariosa vontade de salvar a todas, livrou-nos a todas da escuridão e do isolamento. E a cada vez que alguma de nós sucumbe é pela memória de histórias que outras tantas se libertam dos ímpios.

No entanto, quis o homem que a história continuasse correndo por cursos incertos de montanhas e vales nem sempre acolhedores. Foram negras em açoites, rainhas humilhadas, brancas silenciadas, índias escravizadas para que suas vozes fossem esquecidas, ultrajadas. E ainda assim a palavra de mulher foi forjada e transmitida de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, trazendo até os dias mais recentes o poder do voto.

Novo tempo, novas vozes. Todas, ou quase todas, presentes. Ofertas de uma vida conquistada, suada, ora enlutada, ora celebrada. E a memória da contação de histórias ainda blinda e empodera almas femininas, através de uma realidade despida pela poesia, com frases doidivanas das artífices dos afetos ensinados. Conquistas de uma gente incansável e infante. De Sherazade a Marielle (Franco), muitas vozes foram caladas e mutiladas nas madrugadas inesperadas, mas elas acreditaram que de palavra em palavra a rede de histórias e de vidas criaria outros modos de ser, outras formas de ver o mundo. Um mundo em que o feminino não ameaça e não tolera mais o tronco, o machado ou o facão, sequer, o tiro no coração.”

As vozes que escutamos ecoar da prosa poética acima assaltam os espíritos mais alertas, pois contam-nos brevemente a caminhada de mulheres sob fortes grilhões quase indestrutíveis. Desculpe leitor, leitora e leitore – lembram que combinei semana passada que iria sair do binarismo linguístico e social? – vozerio que lhes trago logo pela manhã, talvez apagando a leveza de uma crônica em seu dia já planejado. “Ossos do ofício!”, argumentaria com certa literalidade. Muitos corpos e cadáveres se amontoam sobre nossos ombros quando esquecemos a luta de nossa ancestralidade para que hoje os gritos aconteçam em vida. Elas se avolumam e me chamam para dentro de minhas angústias: por que mataram Marielle? Quem mandou matar Marielle? 

Como? Pergunta velha? Gasta? Não para as famílias que perderam suas filhas, mães, irmãs, ou para a família de Marielle. Aproximam-se as eleições municipais e me pergunto o barulho que a vereadora assassinada estaria fazendo no Rio de Janeiro ante o desmando em que a cidade e o estado caíram. Isso parece cantilena das viúvas de Marielle? Como assim? Indignar-se diante de covardes que ceifam vidas, interrompem belezas e trajetórias é algo da desordem indesejável?

Sinto muito, mas me vejo exigida em colocar todos os dias os gritos das mulheres ultrajadas na janela. Isso não me deixa olhar para as meninas sem pensar o quanto devem ser orientadas para que não se deixem ultrajar também, quer por mulheres, quer por homens. Aquela que insiste em constranger ou humilhar mulheres, sendo mulher, está traindo essas vozes volumosas no tempo. 

E se tal “conversa” está lembrando as palavras em verso de um poeta, o leitor, a leitora, estão certos. Foi sob a imagem de violões chorando que escrevi a crônica que é lida hoje. Quem já não se emocionou ao ouvir Paco de Lucia ou Yamandu Costa, ou a guitarra incontinente de Pat Metheny? Nem irei comentar Rafael Rebello porque posso sofrer o impacto de perceber que ele é desconhecido de muitos. Não foram tais acordes que inspiraram os versos de João Cruz e Sousa (1861 – 1898), poeta culto, elegante, negro, e certamente por isso fora relegado ao último plano social. Sim, os versos deles revisitados se aliaram às vozes das mulheres lutaram para que hoje, por exemplo, eu pudesse estar aqui de forma comedida, é verdade, insistindo na importância dos gritos contra a violência contra mulheres e as meninas de agora.

Assim, desejo uma excelente semana aos leitores e às leitoras, rememorando o poema emblemático do simbolista brasileiro, Violões que choram

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,

Soluços ao luar, choros ao vento…

Tristes perfis, os mais vagos contornos,

Bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,

Noites da solidão, noites remotas

Que nos azuis da fantasia bordo,

Vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações à luz da lua.

Anseio dos momentos mais saudosos,

Quando lá choram na deserta rua

As cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,

Quando os sons dos violões nas cordas gemem,

E vão dilacerando e deliciando,

Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,

Dedos nervosos e ágeis que percorrem

Cordas e um mundo de dolências geram,

Gemidos, prantos, que no espaço morrem…

E sons soturnos, suspiradas mágoas,

Mágoas amargas e melancolias,

No sussurro monótono das águas,

Noturnamente, entre remagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,

Volúpias dos violões, vozes veladas,

Vagam nos velhos vórtices velozes

Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos violões ecoa

E vibra e se contorce no ar, convulso…

Tudo na noite, tudo clama e voa

Sob a febril agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhos

São ilhas de degredo atroz, funéreo,

Para onde vão, fatigadas no sonho,

Almas que se abismaram no mistério.

https://www.atenaeditora.com.br/wp-content/uploads/2017/11/reflex-DonJuan.jpg

Angeli Rose é colunista às 4as feiras no JCB, membro- correspondente da AMBA, escritora, pesquisadora, Dra. Em Letras, PhD em Educação (UFRJ), pós-doutoranda em Linguística Aplicada da centenária UFRJ. Carioca, geminiana, é idealizadora e coordenadora do COLETIVO MULHERES ARTISTAS; delegada do RJ da Cultive Art Littérature Solidarité; autora de Biografia Não Autorizada de uma Mulher Pancada, de vários artigos, poemas e contos em diversas antologias nacionais e internacionais. De suas pesquisas, publicou e-books, como Reflexões sobre experiências de leitura e algumas contribuições do mito de Don Juan, que é sua tese de doutorado com o projeto de pesquisa premiado pela Fundación María Zambrano na Espanha. (A primeira parte da crônica é uma prosa poética que foi publicada na antologia O Nu da Palavra. Prosa e Verso, produzida pela AJEB-MG.

http://lattes.cnpq.br/4872899612204008

Facebook: https://www.facebook.com/capitu33/  

Instagram: @nascimento capitu

Curta,compartilhe e siga-nos:

6 Replies to “ACADEMIA MINEIRA DE BELAS ARTES – Angeli Rose

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *