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OCUPAÇÃO EM TONS DE CINZA – Por Angeli Rose

A família de minha mãe deitou raízes principalmente naquela zona que está para Minas e para o Brasil como a Toscana para a Itália.

Por Angeli Rose – Jornal Clarín Brasil JCB News – belo Horizonte em 09/01/2021 às 09hs31mins

Vivemos tempos de “ocupação”. Outro dia, já faz bastante tempo, digo, me dei conta de que estamos em tempos de ocupar e sermos ocupados. Afinal, “cabeça vazia, oficina do Diabo” – diz o velho ditado. Ocupar o tempo; ocupar espaços; tomar posse de algo; ocupar os desocupados como os “nem-nem”; ocupar um imóvel abandonado (invasão), no campo jurídico é ação passível de retirada, por ser ação ilegal; ocupar-se de suas preocupações; ocupar militarmente um território, como ocorreu com o Afeganistão há décadas; ou a ocupação de terras improdutivas (lembre-se dos “Sem-terra”); a CBO (Classificação brasileira de Ocupações), não sabe o que é? Veja sua carteira de trabalho e entenderá, ou pelo menos tente; geralmente, a ocupação pode ser diferente da profissão, você sabe, por exemplo, o sujeito se forma em Educação Física e a sua profissão poderia ser professor de Educação Física, ou se fizesse uma especialização, tornar-se-ia um técnico de algum esporte, ou preparador físico, mas nada, ele resolve é ser político – o que, aliás, convenhamos , deve ser mais rendoso do que ser professor de Educação Física, ou técnico de um time de futebol de salão de série B, penso. E falei rendoso e não produtivo, porque pelo exemplo que temos aqui próximo de nós, brasileiros, produtividade é o que passa longe desde há muito tempo. 

Mas vamos a outro polo que esse exemplo já deu o que tinha de dar. Lembre-se de Pedro Nava (1903-1984), escritor mineiro, porém, médico de formação e profissão, que acabou tornando-se em idade madura um exímio e admirável escritor. Se você tem aspirações a ser um romancista respeitado, comece por ler Pedro Nava. A saga sobre a família, memorialística, do autor se inicia com a descrição e apresentação de seus ascendentes brasileiros e estrangeiros em Baú dos Ossos (1974):

Mas que constância prodigiosa é preciso para semelhante recriação. E que experiência… A mesma de Cuvier partindo de um dente para construir a mandíbula, Inevitável, o crânio obrigatório, a coluna vertebral decorrente e, osso por osso, o esqueleto da besta. A mesma do arqueólogo que da curva de um pedaço de jarro conclui de sua forma restante, de sua altura, de suas asas, que ele vai reconstruir em gesso para nele encastoar o pedaço de louça que o completa e nele se completa. Para recompor os quadros de minha família paterna tenho o que ouvi […]. Uns retratos. Umas folhas de receituário […]. Cartas. Cadernos de datas […]. Notas diárias […]. Neuchâtel toda dourada da cor de suas pedras e toda luminosa das águas do seu lago. O sol radioso e o céu estrelado de Gênova, fazendo recordar o Brasil […]. Florença com nova sugestão pátria (“vamos hoje a um theatro em que se canta a ópera Guarany do brasileiro Carlos Gomes”) […].

A família de minha Mãe deitou raízes principalmente naquela zona que está para Minas e para o Brasil como a Toscana para a Itália. Essa Etrúria nacional, sua parte mais alta (eu não falo só das montanhas!) e mais nobre (ah! solo imperial e patrício!) fica contida num círculo que passa seus arcos por Queluz, Bandeirantes, […] Lagoa Santa, Confins, Ribeirão das Neves […]. (p. 45, 61, 96).

Observem como ele descreve as cidades, compara, introduz elementos singulares e peculiares da época. Na leitura de seus romances, o leitor também receberá “de quebra” indícios da identidade brasileira na visão do autor. Nava também tinha o talento para povoar, ocupar espaços, imagens, lembranças com o silêncio : 

Em 1959 voltei ao Ceará para dar um curso na sua Universidade. Fui novamente ver a casa de minha avó. De todos os que eu vira ali em 1919, só estava viva minha tia Alice. Minha avó, morta. Marout, morta. Tia Dinorá, morta. Maria, morta. Joaquim Antônio, morto. Tia Candoca, morta. Tio Salles, morto. Não entrei na casa, morta também, morta e fechada, assombrada, muda, transformada em depósito de madeiras. Olhei longamente sua fachada, suas janelas zarolhas, suas portas cerradas, as paredes outrora de um verde alegre como o das ondas, e agora de uma cor amarela e carcomida de caveira. ( p. 36,)

Desculpem, leitor e leitora, mas ao iniciar esse texto, imediatamente minha memória foi ocupada pela prosa de Pedro Nava, entre outros e achei por bem compartilhar um pouco dessa primorosa escrita mineira que fala de um homem em Minas Gerais, através de seus predecessores, mas fala também do mundo, por eles mesmos. 

Mas voltando à questão que ficou encafifada logo no início da crônica – que quase vira crítica literária! – enfim, falo de ocupar! Ocupar com a arte as pessoas ocas, aquelas que esperam o tempo passar nada fazendo pra si e pra ninguém. Por incrível que pareça há muitas pessoas assim…

No campo das artes, há a estética atual que propõe projetos de ocupação, como a do cartunista Angeli (a 12ª. DO Itaú Cultural SP : https://youtu.be/gl8P3n9WIps ). Esse virginiano que criou a legendária Rê Bordosa, entre tantos outros personagens de quadrinhos brasileiros. Quando professora do ensino médio, meus alunos sempre pensavam no início do ano que os quadrinhos ou as tirinhas que apareciam nas páginas dos livros didáticos de língua portuguesa e Literatura eram de minha autoria e até ficavam excitados com a possibilidade, até que eu com largo sorriso desfazia a confusão. Isso ocorreu por décadas. Depois, lá pelos idos dos anos 80 descobri um laboratório italiano de remédios também “Angeli”. Não lá muito feliz a revelação. 

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Cartum da Rê Bordosa de Angeli.

Sigamos com a “ocupação”. Ela é mais do que uma simples exposição de trabalhos e obras de um artista. Ela ocupa um território institucionalizado para tal fim que pretende transbordar para o imaginário do leitor/espectador a ponto de levá-lo a despertar sua potencialidade de fabulação. Complicado? Aguarde um pouco mais par ver aonde rapidamente quero chegar para poder finalmente partir, caro leitor, cara leitora (se houver ainda algum por aqui!). A “ocupação” traz as noções de transitoriedade e presença. É fundamental fazer-se presente, ao menos por um tempo, em espaços que originalmente aquele artista, ou aquelas obras não estariam. As ocupações artísticas podem ocorrer em galerias, teatros, garagens, edifícios abandonados, fábricas inativas, etc. As ocupações artísticas têm o intuito de ser uma alternativa à elitização da arte.

Quando surgiram as primeiras “ocupações”? Alguns estudiosos do termo veem a “ocupação” como originária de movimentos sociais lá da década de 60 em diante. Porém, em Wall Street com a OWS, isto é, com a Occupy Wall Street, em Nova York, movimento de protesto em 2011, o termo foi fixado e sempre com conotação política e contracultural. Occupy de Wall Street tinha na agenda de luta o protesto contra as desigualdades sociais, econômica, a corrupção e a ganância. Um movimento de resistência de todos os gêneros, classes e raças, sem liderança, se autodenominando como representantes dos 99% de cidadãos do planeta que não toleram mais a ganância de 1% de cidadãos que detêm toda a riqueza do mundo. Do ponto de vista estético, os cartazes foram a forma e composição mais chamativa, embora diversas manifestações de arte de rua estivessem presentes.

AR Occupy Wall Street | MIT – Docubase
[https://docubase.mit.edu/project/ar-occupy-wall-street/] Docubase – MIT.

Depois, ocorreram “occupay” por vários países, como se estivessem reproduzindo a “Primavera Árabe”. Desculpe nova janela, mas acho que valerá. A “Primavera Àrabe” foi como uma onda revolucionária de manifestações e protestos, como greves, comícios, passeatas, uso de mídias sociais, que aconteceram no Oriente Médio, em 2010, para comunicar e  sensibilizar as populações dos países onde ocorreram e a comunidade internacional sobre ações repressivas. 

Fechamos esta “janela” e seguimos adiante com as ocupações artísticas. No Brasil, Ocupação Prestes Maia, em São Paulo; VEM! – Teatro Gonzaguinha, PROJETO ÁGORA – Teatro Maria Clara Machado, CÂMBIO – Teatro Café Pequeno, essas, no RJ e “Ocupação Estelita”- Recife, este último, embora tivesse a ver com a especulação imobiliária e com uma iniciativa de construção de 12 torres no cais São José Estelita, o que se tornou objeto de protesto e de intensa contestação, a arte esteve presente de diferentes maneiras a fim de resistir e apoiar as manifestações contrárias às construções imobiliárias planejadas. 

A ocupação artística emblemática foi a de Rafael Vaz, grafiteiro, que ocupou a Rua Agissé, número 280, em São Paulo (2011). Artista com exposições internacionais pelo mundo, transformou um espaço abandonado e vazio em galeria de arte. Em entrevista concedida a Luiz Vassalo, Rafael fala sobre o que significa uma ocupação para ele. Vamos conferir: Simboliza para mim um grito de liberdade que diz que tudo pode acontecer. Sofri muito preconceito e senti hostilidade grande de galerias que não deram espaço para divulgar meu trabalho. Já que os lugares convencionais não abrem as portas para a gente, criei meu próprio espaço para divulgar meus trabalhos e fiz questão de divulgar trabalhos de artistas que não têm condições de expor – aqueles que já têm certo tempo na arte e fazem seu trabalho, mas têm a mesma dificuldade que eu sinto. Esse é meu objetivo. O que importa é dar oportunidade para novos artistas. Nós mesmos temos que fazer a coisa acontecer e não ficar esperando desse grupo que é seleto e tem uma mente muito fechada e, até mesmo, preconceituosa. [ https://operamundi.uol.com.br/samuel/36303/ocupacao-artistica-alternativa-a-elitizacao-da-arte ]

Galeria Fat Cap - terreno

Casa da Rua Agissé,280, Vila Madalena – reduto badaleiro de Sampa – .ocupada.

Então, como dizia, estamos em tempos de “ocupações”, de afirmação do poder e da potencialidade de comunidades públicas para obter acesso aos bens públicos e fazer de alguns privados e privatizados bens que possam servir ao bem estar público. Isso lhe parece muito radical? Ou parece ferir o direito à propriedade privada? Pode ser, até porque aquelas ocupações “indevidas” do ponto de vista legal, têm recebido ordem de reintegração de posse, como foi o caso da ocupação da Rua Agissé em São Paulo.

As ocupações também têm um impacto sobre as cidades a ponto de transformarem a paisagem local, ainda que não seja definitiva a transformação, isto é, na maioria das vezes é temporariamente. Elas potencializam a visão do diferente, de um outro modo de olhar os espaços, inclusiva e esteticamente. É a desobediência para ocupar e conviver, dando a ver cidades mais afetivas em que viver junto é possível, portanto, há resistência ao individualismo egocêntrico do capital especulativo para que o espírito de comunidade se sobreponha. A ocupação considerada a maior da América Latina é a “Ouvidor 63”, em São Paulo, com vários ateliês de artistas residentes ou não [https://www.cidadesafetivas.com.br/coletiv-us/ ]. 

A ocupação, enquanto ação estética, parte de um pressuposto fundamental, o de que o abandono tem em si uma potência para além do vazio, do que é tido como morto. O espaço ocupado toma vida e forma diversa sem perder a memória do que fora. Esse cruzamento que a intervenção gera é também o cruzamento dos desejos e da desistência com a esperança. O artista, nesse sentido, é aquele que produz sentidos entre o passado e o presente, de maneira em que o agora contém supressão, abstração e mutação.

 Tenho de me desculpar se criei alguma expectativa em relação aos “tons de cinza”, pois a crônica em nada se direcionou para o aspecto sexual, como o romance e o filme baseado nele 50 Tons de cinza tematizam com descrições e imagens bastante picantes, Aqui, o cinza é o concreto dos prédios, espelhados ou não, das metrópoles alocadas pelo globo que anda em ritmo lento, dada a situação pandêmica em que nos encontramos.

Então, você já prestou atenção a sua cidade? Reparou se a paisagem local está mudada? Conhece os grafites de murais e paredes modificados por artistas que criaram suas obras doando sentidos outros aos prédios enormes acinzentados que existem pelas cidades grandes?  Em tempo de pandemia, caso você arrisque descansar do isolamento social, devidamente protegida, protegido, talvez fique mais fácil enxergar as novas dimensões dos personagens ou figuras grafitadas, por exemplo. É nisso que a pandemia também impactou o cotidiano das cidades: tornou as ações mais internas, domésticas, e as ocupações descontínuas no que dizem respeito às invasões e apropriações da transformação dos espaços, artigo de luxo contemporâneo. Por outro lado, ela, a pandemia, convocou quase todos a ocuparem (-se),invadirem(-se) e se apropriarem do que estaria alienado de si. Ser residente de si mesmo para poder compreender o Outro e desenvolver a empatia tão necessária em tempos que exigem solidariedade para vivermos juntos. 

O desafio não seria manter a delicadeza na sociabilidade sugerida pelas ocupações? De outro ponto, o desafio seria preservar a individualidade, força centrífuga que a pandemia de algum jeito deu visibilidade através da forçada domesticidade? E para os “sem-teto”? Como dar a eles condições de conhecerem o social na convivência e o doméstico na integração, se nada têm, por terem perdido o lugar ou nunca o terem para si? Um pouco mais extensivos, podemos pensar sobre os refugiados, nesta condição o que seria viver junto entre tantos estranhos e comuns? “Como viver junto?” Prece que a questão é de coletividade e não mais individual, embora nossa individualidade esteja sendo posta a prova num mundo em que não se quer estar isolado.

Deixo como reflexão em forma de provocação um fragmento do livro de Roland Barthes “Como viver junto” :

Alcançaríamos aqui, aquele valor que tento pouco a pouco definir

sob o nome de “delicadeza” (palavra um tanto provocadora no

mundo atual). Delicadeza seria: distância e cuidado, ausência de

peso na relação, e, entretanto, calor intenso dessa relação.

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Rose é colunista do JCB, para onde escreve semanalmente. É pesquisadora de Literatura Brasileira e na interface ensino (Educação) e Literatura. E, atualmente, realiza o segundo Estágio Pós-doutoral l(Ph. D.) na centenária UFRJ em Letras. Foi agraciada recentemente com o título de Embaixadora da Paz pela OMDDH, signatária da ONU e com os prêmios  Cecília Meirelles na categoria cronista pela Literarte; e Internacional de Literatura Machado de Assis pela FEBACLA. Carioca e geminiana, é idealizadora e coordenadora do Coletivo Mulheres Artistas, coletivo cultural, além de integrar diversas associações e academias de Letras, Artes e Ciências.

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